Instituto Aurora https://institutoaurora.org Educar em Direitos Humanos Wed, 29 May 2024 17:39:56 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 https://institutoaurora.org/wp-content/uploads/2021/08/cropped-AURORA_icone-32x32.png Instituto Aurora https://institutoaurora.org 32 32 Representação e representatividade feminina na política: por que apenas eleger mulheres não é suficiente? https://institutoaurora.org/representacao-e-representatividade-feminina-na-politica/ Wed, 29 May 2024 17:39:56 +0000 https://institutoaurora.org/?p=237823 As eleições se aproximam e, com elas, é comum nos depararmos com a expressão: “vote em mulheres”. Mas será que apenas isso é suficiente para ter nossas pautas sendo representadas? Neste texto serão abordados os limites dessa representação, especialmente no que tange às representatividades fictícias, bem como das demais políticas públicas de inclusão das mulheres nos espaços públicos.

Por Gabriela Assad, para o Instituto Aurora

(Foto: Pablo Valadares / Câmara dos Deputados)

Durante a primeira onda feminista, ocorrida entre o final do século XIX e início do XX, o movimento sufragista das mulheres foi às ruas demandar o exercício dos direitos civis e políticos, antes apenas concedidos aos homens. O período que compreendeu o entreguerras postergou a causa em muitas partes da Europa, mas seguiu firme no resto do mundo, especialmente na América Latina. 

De maneira inédita no país, a lei estadual n° 660, sancionada no Rio Grande do Norte (RN) em 1927, estabeleceu a não distinção de gênero para o exercício do voto e dos direitos políticos. Alzira Soriano foi eleita a primeira prefeita mulher em 1928. Constitucionalmente, o movimento das mulheres conquistou o direito ao voto apenas em 1934 – antes, em 1932, o Código Eleitoral concedia o direito apenas às mulheres casadas, sob a apreciação do marido, e viúvas com renda própria. 

Embora esse cenário tenha sofrido algumas alterações com o tempo como, por exemplo, a implementação de algumas políticas afirmativas e leis de proteção à vítimas de violência política de gênero, o Brasil demonstra crescimento diminuto no que tange à participação das mulheres na política. Os números são preocupantes especialmente porque a baixa participação feminina em cargos decisórios está intimamente relacionada com o aumento da desigualdade de gênero e a baixa efetividade da democracia.

No entanto, como de praxe, o sistema patriarcal-capitalista coopta algumas bandeiras levantadas pelo movimento feminista. Nesse sentido, não será qualquer representação que garantirá a representatividade e a mudança necessária para desafiar o status quo vigente, razão pela qual devemos nos atentar na hora de escolher as (os) representantes a cada eleição. Este texto visa, sobretudo, alinhar as demandas cidadãs ao pensamento crítico.

Visando fugir de qualquer interpretação reducionista e normativa de sexualidade e gênero, sempre que utilizarmos as expressões “feminina” ou “mulheres”, estamos nos referindo a todas as pessoas que se identificam como mulheres, sejam elas cis ou trans.  

O que vamos abordar neste artigo:

Publicado em 29/05/2024.

Separação público X privado

Historicamente, forjou-se a divisão – fundamental para a manutenção do sistema capitalista – entre produção econômica, a de mercadoria, e reprodução social. Essa divisão foi, essencialmente, marcada pelo fator gênero.

Às mulheres, coube o trabalho de reprodução social, de cuidado e quase restrito à esfera privada, enquanto que aos homens a produção econômica, o trabalho nas fábricas e o poder social, garantiram a ocupação da esfera pública. No entanto, este não aconteceria sem aquele. Isso significa que o trabalho realizado nas fábricas, nos bancos, nos escritórios não aconteceria sem um trabalho de reprodução da vida material fora desses espaços. 

Para Tithi Battacharya (2013), a reprodução social é percebida em três processos distintos mas interligados: nas atividades que regeneram o trabalhador fora do processo de produção, como alimentação, vestuário, saúde; nas atividades que mantém os trabalhadores passados e futuros fora do processo produtivo, isto é, crianças e idosos; na reprodução de novos trabalhadores, com gravidez e parto.  

Embora essencial à produção de valor, por não ser pago, socialmente o trabalho reprodutivo é visto como “desimportante”. Sendo, por sua vez, um trabalho considerado sem importância, destinado à esfera privada, entendeu-se desnecessária a representação política. Desse modo, a seara política foi, durante muito tempo, um espaço pensado e produzido pelos e para os homens. Com homens, queremos dizer, homens brancos, em um padrão cis heteronormativo, e de classe social mais abastada.

Percebe-se, dessa forma, que a ausência de mulheres em cargos decisórios, em especial no cenário político, nada tem a ver com incapacidade ou “jeito”, mas sim com a perpetuação de determinada estrutura, a qual separa as mulheres da tomada de decisão – processos iniciados dentro da própria estrutura familiar.  

No entanto, como em todas as outras esferas da vida social, é imperativo romper com a separação público-privado na política, de modo que a busca pela igualdade de gênero dentro das instituições é fundamental não apenas para que se tenha representação igualitária nesses espaços, mas também – e principalmente – para que as demandas das mulheres sejam ouvidas e satisfeitas. 

Demanda por igualdade de gênero

Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) tenha sido enfática ao afirmar que toda pessoa tem direito de tomar parte, em condição de igualdade, dos negócios públicos do seu país, diretamente ou mediante representação (artigo 21, DUDH), diante da desigualdade de acesso de mulheres aos cargos públicos fez-se necessária a elaboração de outros documentos internacionais de DH abordando a temática, mas agora sob uma perspectiva mais específica e com caráter vinculante. 

A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW – sigla em inglês), de 1979, representa um importante marco na luta pela não discriminação das mulheres, em especial no âmbito político. 

A Convenção orienta que os Estados-parte tomem medidas cabíveis para garantir, inclusive nas esferas social e política, os direitos humanos das mulheres. Desse modo, “medidas especiais de caráter temporário” podem ser utilizadas para acelerar esse processo – tais como a adoção de políticas afirmativas. 

A Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, também denominada de Declaração de Viena (1993), pactua que a participação plena das mulheres na vida política, civil, socioeconômica e cultural, em condição de igualdade, como agentes e beneficiárias do processo de desenvolvimento, é prioridade da comunidade internacional, de modo que os governos devem atuar em todas as esferas para a sua promoção.

No mesmo sentido, durante a IV Conferência Mundial sobre a Mulher (1995), intitulada “Ação para a Igualdade, Desenvolvimento e Paz”, foi levantada a discussão sobre a promoção e o fortalecimento da justiça e democracia mediante a persecução da igualdade entre homens e mulheres na tomada de decisões. 

Como objetivos estratégicos, a Conferência defende a promoção da igualdade de direitos das mulheres no acesso às estruturas de poder e tomada de decisão, a adoção de práticas não discriminatórias pelos governos, além da capacitação de lideranças femininas. 

Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), lançados em 2015 pela ONU, consideram como fundamental a promoção e defesa da Igualdade de Gênero para a construção da paz e da prosperidade necessária até 2030. 

De acordo com a Organização, o intuito do ODS 5 é  “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. Além disso, a meta 5.5 visa garantir a “participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública” (ONU, 2016). 

Ainda de acordo com a ONU, no Glossário sobre Igualdade de Gênero (ONU, 2016), participar da vida pública é um Direito Humano e, por sua vez, a tomada de decisões públicas é uma medida-chave para a promoção de igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres. A participação da vida pública, vale dizer, compreende o direito de votar e de ser votada. 

Ademais desse objetivo, também é cabível mencionar outros que, apesar de não especificarem o recorte, estão relacionados ao primeiro. O ODS 10, a respeito da redução das desigualdades, possui, na meta 10.2, o empoderamento e a promoção da “inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra”.

Por fim, destaca-se o ODS 16, o qual fala sobre a promoção de sociedades pacíficas e inclusivas para se alcançar o desenvolvimento sustentável, além de “proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”. Mais ainda, a Organização insta aos Estados a promoção e cumprimento de “leis e políticas não discriminatórias para o desenvolvimento sustentável” (meta 16.b). 

Ao considerar que, sem a participação ativa das mulheres na tomada de decisão, objetivos como Igualdade, Desenvolvimento e Paz não podem ser plenamente satisfeitos, a ONU Mulheres (2015) destaca que a Democracia Paritária transcende o meramente político e destina-se à transformação das relações de gênero, contribuindo para um novo equilíbrio entre mulheres e homens.

Entendemos, desse modo, que efetivar a representação feminina equitativa na política funciona como um condutor, uma espécie de “motor”, para concretização dos direitos humanos das mulheres, bem como para alcançar o Desenvolvimento Sustentável proposto pela Agenda 2030.

Relatório divulgado pela União Interparlamentar (UIP, 2024) apontou que, mundialmente, a proporção de mulheres em cargos parlamentares se situa em 26,9%, 0,4% a mais em relação ao mesmo período do ano anterior (1 de janeiro de 2023). Embora seja um avanço considerado comparável ao de 2022, ocorre em um ritmo mais lento que nos anos anteriores. 

No mesmo sentido, levantamento realizado pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (2023), aponta que a meta 16.7, dos ODSs, referente à governança mundial inclusiva, possui um melhor desempenho na América Latina em comparação com o restante do mundo. Para atingir esse objetivo até a data estipulada pela Organização, contudo, faz-se necessário um maior esforço por parte dos agentes públicos.

Conforme o Mapa Mulheres na Política (2023), divulgado pela ONU Mulheres em parceria com a União Interparlamentar, o Brasil ocupa a 129ª posição no ranking de 186 países, no que diz respeito à representatividade feminina nos cargos considerados parlamentares, como Câmara dos Deputados e Senado Federal – com 17,7% e 12,4%, respectivamente. 

Após as eleições de 2022, o quantitativo de mulheres nos cargos ministeriais cresceu consideravelmente em relação aos anos anteriores do Mapa, ainda que esteja longe da equidade necessária. Ocupando a 37ª posição de 182 países analisados, o Brasil possui 36,7% de cadeiras preenchidas por mulheres, ou seja, onze (11) do total de trinta (30) ministros (ONU; IUP, 2023). 

Tal cenário parece indicar uma crescente no que diz respeito à ocupação das mulheres nos espaços públicos, muito por conta das políticas afirmativas implementadas e novos caminhos políticos traçados. No entanto, ainda persistem alguns empecilhos em virtude da estrutura misógina que permeia esses espaços.

Limitações às políticas públicas de inclusão e equidade de gênero

Fraude às cotas de gênero

Objetivando concretizar a paridade de gênero demandada, as cotas são um fator decisivo para a representação das mulheres nos espaços de decisão. Em espaços em que se adota algum tipo de cota, apenas a exigida por lei ou acrescida da implementada voluntariamente pelo partido, houve um aumento de, aproximadamente, 2,2% de participação feminina em 2024, à nível mundial, em relação aos anos anteriores (IUP, 2024).  

No entanto, inúmeros fatores influenciam na efetividade de determinadas políticas públicas, incluindo as cotas. Dentre eles, podemos considerar como fundamental a cultura de determinada localidade, a qual pode vir a ser mais ou menos favorável à inclusão das mulheres no cenário político. Nesse caso, o conservadorismo latente na cultura política brasileira age impedindo a plena realização da igualdade de gênero 

A Lei 12.034/09 alterou o artigo 10, §3°, da Lei 9.504/97, responsável por estabelecer normas para a realização das eleições, instituindo cota mínima e máxima de 30% e 70%, respectivamente, para candidaturas de cada gênero. Na prática, o que ocorre é que apenas esses 30%, o mínimo, são destinados às mulheres – contrariando a própria noção de paridade defendida com a instituição da política afirmativa. 

Importante mencionar que, em 2020, sob força da Emenda Constitucional n° 97/2017, as coligações, junção de dois (2) ou mais partidos, deixaram de ser permitidas em caso de eleições proporcionais – para deputados ou vereadores. Portanto, essa porcentagem valerá apenas para o partido, que deverá ter suas próprias candidaturas.

Além disso, ainda existem candidaturas fictícias, popularmente chamadas de “candidaturas laranjas”. Essas candidaturas se referem ao registro de mulheres como candidatas apenas para preencher os números mínimos estabelecidos legalmente, sem a intenção de se elegerem de fato. Ou, ainda, para receberem recursos do fundo eleitoral, os quais futuramente serão desviados às candidaturas masculinas do partido. 

Nesse sentido, as pesquisadoras Malu Gatto e Kristin Wyllie apontam que, nas eleições de 2018, 35% de todas as candidaturas de mulheres para a câmara dos deputados foram realizadas apenas para preencher formalmente as cotas exigidas por lei

Embora essa prática seja corriqueira entre todos os partidos brasileiros, tanto à direita quanto à esquerda, alguns partidos lideram os índices de disparidade na competitividade entre mulheres e homens – indicativo do uso de candidaturas fictícias. Esse é o caso do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), do Partido Social Democrático (PSD) e do Partido Social Liberal (PSL), com 65%, 20% e 16%, respectivamente.

Para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dentre os indícios para a caracterização de fraude às cotas de gênero estão a ausência de participação nas campanhas, a votação inexpressiva ou nula e a ausência de prestação de contas. Em caso de fraude comprovada, esta afeta o partido ou coligação como um todo, já que enseja a anulação dos votos recebidos pela legenda e a cassação do Demonstrativo de Regularidade dos Atos Partidários (DRAP).

O Tribunal identificou fraude às cotas de gênero nas duas últimas eleições, de 2020 e de 2022, nos oferecendo indícios de que o cenário não parece promissor. Desde o ano passado, foi confirmada a fraude em 81 recursos julgados pelo TSE, a exemplo do estado do Mato Grosso do Sul (MS) e dos municípios de Igarapé (MG) e Maranguape (CE)

Violência política de gênero

É sabido que um dos maiores desafios da atualidade dentro da agenda pela Igualdade é Gênero é o enfrentamento à violência contra a mulher. Entendamos Violência como todo e qualquer ato em razão do gênero que cause dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, podendo ou não levar ao resultado morte, na esfera pública ou privada – conceito adotado dentro da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 1994.  

Quando inserida no contexto político, a violência contra as mulheres toma outros contornos. Em geral, ela visa impedir o pleno exercício de seus direitos políticos, incluindo o de votar e ser votada, fazer campanha e se expressar livremente dentro das sessões. Em sentido estrito, age impedindo que mulheres tenham voz e, consequentemente, possam dar voz a todas as mulheres que se sentem representadas por elas, razão pela qual, em maior ou menor grau, a violência política de gênero afeta todas nós. 

Podemos considerar como exemplos de violência política de gênero os comentários misóginos – sem ou com delineamentos interseccionais –, o assédio moral ou sexual e as ameaças dirigidas a elas ou a membros de sua família. Embora não seja um problema recente, nos últimos anos observamos um aumento vertiginoso desses ataques em decorrência da internet, a qual atua com o um “agente facilitador”.  

Visando coibir essa prática, a Lei 14.192/21 estabelece algumas normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher. Dentre outras disposições, a Lei altera o Código Eleitoral (Lei 4.737/65), estabelecendo o assédio, constrangimento, ameaça ou perseguição à mulher candidata ou detentora de mandato eletivo como crime eleitoral – acrescido de aumento de pena em caso de realização mediante a internet ou qualquer rede social. Entretanto, a normatização está longe de ser suficiente.

Segundo relatório produzido pelo Observatório de Violência Política Contra a Mulher (2022-2023), da Transparência Eleitoral Brasil, durante as eleições gerais de 2022, o tema da violência política de gênero foi pauta, no mínimo, 90% das vezes. As principais promotoras dessa discussão foram as próprias candidatas, com 48%, seguidas pelas Organizações da Sociedade Civil e autoridades eleitorais, com 20% e 16%, respectivamente (TE Brasil, 2023).

Uma consideração importante a ser feita é que, das vezes em que as candidatas levantaram essa discussão, 40% delas foi através das denúncias realizadas em causa própria. A violência psicológica aparece em 85% desses casos, evidenciando a dificuldade de tornar a violência política de gênero tangível, perceptível à maior parte da sociedade, que ainda enxerga a reação equivalente como “mimimi”. 

Além disso, o crescimento da extrema-direita, somado aos discursos de ódio comumente utilizados contra grupos minoritários, reforça essa violência de gênero. Levantamento realizado pela Justiça Global em conjunto com a Terra de Direitos (2020-2022) revela que casos de violência política aumentaram 400% se comparados a 2018, as ameaças se revelam como a principal expressão dessa violência. 

Ataques direcionados às mulheres, cis ou trans, somam 41,3% dos casos e são 2 vezes mais alvos de ofensas, ameaças e agressões em comparação aos homens cisgêneros. Mulheres negras, ainda, correspondem a 20% desses ataques. Soma-se a isso o fato que de houve um aumento considerável dos ataques à esquerda (PT e PSOL, principalmente), totalizando 28,7%, quase o triplo se comparados ao levantamento anterior (2016-2020) (Justiça Global; Terra de Direitos, 2023). 

Manuela d’Ávila (PCdoB) e Isa Penna (PSOL), à época de seus mandatos, bem como Erika Hilton (PSOL), deputada eleita nas últimas eleições de 2022, foram algumas das parlamentares vítimas de violências políticas de gênero nesse período. Em última instância, essas agressões podem ser transmutadas em assassinato, como o que vitimou a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), em 2018. 

De acordo com o relatório divulgado pela IUP (2023), essa conjuntura – ataques pessoais, violência política de gênero e esgotamento mental – contribui para que muitas mulheres tenham abandonado a política nos últimos anos, razão pela qual a criação de ambientes seguros e favoráveis para que os direitos políticos das mulheres sejam plenamente realizáveis contribui para a criação de um cenário democrático paritário.  

Representação e representatividade feminina na política: faces da mesma moeda?

Uma vez que mulheres tenham alcançado posições de destaque no cenário político, por meio de cotas ou não, não existe garantia de que mudanças reais ocorrerão em prol do fortalecimento da democracia. Primeiro em razão da dificuldade na manutenção dessa posição, principalmente pela violência política a que são submetidas diariamente. Segundo em virtude daquilo que chamamos de representatividade fictícia ou, meramente, representação. 

A representatividade fictícia se refere apenas à representação “simbólica” de mulheres, isto é, olhar e vê-las presentes nas três esferas de poder (executivo, legislativo e judiciário), sem que isso, de fato, traga benefícios à concretização dos direitos das mulheres. Funciona mais como uma atualização “2.0” das estruturas da velha política, visto que mantém as mesmas disposições de outrora, do que um sinal de que estamos no caminho certo.

Tal representatividade é, em maioria, a ofertada pelo neoliberalismo dentro dos canais de comunicação de massa, como a televisão, principalmente aberta – por conta dos horários de propaganda eleitoral gratuita –, e as redes sociais. Esses canais são construtores de discursos, os quais cumprem uma função primordial na formação das subjetividades de quem os escuta. Assim, a ideia comprada é a do feminismo liberal, onde ter mais mulheres em cargos de chefia é suficiente para se atingir a igualdade.

De outro modo, a representatividade substantiva, concreta ou real, é aquela que usa a política como um instrumento de promoção e defesa dos direitos humanos e democráticos das mulheres, com políticas de promoção à saúde sexual e reprodutiva das mulheres, ampliação dos direitos trabalhistas, assistência social às mulheres em situação de vulnerabilidade e recusa aos estereótipos de gênero. Acreditamos na mudança proveniente deste cenário. 

Portanto, não será qualquer representação política que garantirá representatividade substantiva. Ou seja, não basta apenas eleger mulheres, sejam elas negras, LGBTQIA+, PCDs ou indígenas. É necessário que estas mulheres sejam aliadas, e estejam alinhadas, à luta feminista, antirracista, indígena, anticapacitista e contra todas as opressões – incluindo aqui a defesa do meio ambiente seguro e habitável como condição sem a qual não há o exercício dos demais direitos.

Realizar essa diferenciação é importante para explicar porquê a eleição de algumas mulheres não promove a mudança almejada, precisamente por levantarem bandeiras conservadoras e agirem, de maneira consciente ou não, em benefício do patriarcado. Exemplo disso é a senadora e ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves (Republicanos-DF), cuja bandeira é a defesa de um conceito de família cristã normativa. 

De acordo com Souto e Sampaio (2021), buscar representatividade substantiva é mais importante do que apenas buscar o aumento no número de mulheres eleitas. Embora ações com vistas ao aumento da participação feminina sejam importantes, como a política de cotas, é importante pensar em formas de ampliar esse número verdadeiramente, a fim de alcançar a igualdade de gênero e promover a democracia. 

Para os autores, essa se revela uma armadilha do sistema patriarcal reinante, uma vez que adentrar esses espaços já se mostra uma tarefa complicada, mais ainda se a intenção for buscar consolidar as pautas de gênero (Souto; Sampaio, 2021). 

Mulheres que já estiveram envolvidas com assuntos políticos no passado ou, ainda, que pertencem a famílias tradicionalmente conhecidas, tendem a se aliar mais aos homens, dado que ainda guardam o imaginário – construído socialmente – de que à eles se deve o sucesso eleitoral. Agora, todavia, utiliza-se do diferencial de ser a representante da ala feminina do partido. 

Embora não completamente protegidas, já que ocupam espaços de liderança, observa-se que mulheres alinhadas às pautas hegemônicas estão menos suscetíveis às manifestações de violência política de gênero. Isso é o que indica o levantamento ora mencionado: mulheres alinhadas à esquerda, principalmente as negras, estão mais suscetíveis à violência política de gênero. Portanto, alinhar-se mais à direita também pode funcionar como um “escudo protetor” – não há desafio ao status quo vigente. 

É verdade que representatividade também pode carregar um viés subjetivo, ou seja, se sentir representada(o) nas pautas defendidas por alguém no poder varia de pessoa para pessoa. Entretanto, o cenário democrático desejado é aquele que incorpora a demanda por representatividade de todas as diversidades existentes na pólis

Atualmente, apenas uma parcela minoritária da população – a classe dominante – tem, de fato, seus interesses sendo representados ali, razão pela qual a maioria das políticas públicas ou leis aprovadas dentro das casas legislativas favorecem setores mais conservadores e reacionários, como a bancada ruralista e/ou evangélica. Mais da metade das mulheres eleitas em 2022 para o Congresso Nacional estão alinhadas a essas pautas, favorecendo o desenrolar de contrarreformas sociais. 

Diferentemente disso, apenas compreendemos um cenário democrático paritário com a efetiva representatividade substantiva de todas as mulheres, sejam elas brancas, negras, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, com deficiência, cis ou trans, lésbicas, bissexuais e demais diversidades existentes. Frisa-se, com isso, a necessidade da demanda de gênero ser também interseccional, ou seja, de modo a considerar as conexões e cruzamentos de opressões. 

No entanto, isso não implica dizer que só mulheres podem defender o direito das mulheres e pleitear políticas de inclusão dentro de espaços públicos. Ou, ainda, que só quem sofre com determinada opressão pode falar sobre e/ou lutar contra ela. Nessa seara, um homem pode ser mais aliado à pauta feminista do que uma mulher, que se afirma aliada enquanto é favorável a projetos de lei que possam vir a prejudicar as mulheres.

Lugar de Fala

É necessário, desse modo, fazer uma ressalva sobre o conceito de lugar de fala, trabalhado pela filósofa Djamila Ribeiro (2019). Costuma-se pensar – principalmente pela massificação do termo trazida pela internet – que o conceito impede que uma pessoa traga sua perspectiva/opinião sobre determinado assunto. É o famoso “não vou falar sobre isso porque não tenho lugar de fala”.

Contudo, lugar de fala é um conceito muito mais analítico que proibitivo, o que significa que ele analisa o lugar do qual a pessoa fala, não a proíbe de falar. Denota que todas(os) podem e devem discutir sobre as diversas opressões existentes na sociedade, mas existem pessoas que falam a partir do lugar de quem é vitimada por determinada opressão – e são essas pessoas que precisam ter suas vozes reconhecidas e representadas. 

Segundo Ribeiro, o que se espera com o uso desse termo é que “indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar, e como esse lugar impacta diretamente na constituição dos lugares de grupos subalternizados” (Ribeiro, 2019, p. 85). Isto é, que se reflita criticamente sobre as opressões. 

A demanda por um cenário onde mais mulheres ocupem posições de liderança na política advém da necessidade de ter alguém que vivencie, compreenda e defenda a causa das mulheres – bem como a emancipação de todas as outras formas de opressão existentes na sociedade. Todavia, no caso de representatividades fictícias, buscar um candidato que se alie às pautas de gênero pode provocar mudanças bem mais sólidas. 

Considerações finais

O atual sistema político brasileiro reflete a supremacia masculina e cisheteropatriarcal vigente na sociedade. Nesse cenário, a política funciona mais como um instrumento de opressão e violação de direitos e menos como a busca pelo bem comum dos cidadãos e cidadãs. Em contrapartida, cada vez mais demanda-se igualdade de gênero nas tomadas de decisão, a fim de que os direitos das mulheres sejam assegurados. 

Embora a busca pela igualdade de gênero não deva ser uma busca isolada, mas coletiva, uma vez que beneficia a sociedade como um todo, grupos conservadores e que visam a manutenção das estruturas vigentes oferecem empecilhos à concretização desse objetivo. Desse modo, observamos a fraude às cotas de gênero e o crescente número de violência política de gênero como expressões dessa reação. 

Além disso, outra armadilha oferecida pelo sistema é a representatividade fictícia ou falseada. Isso ocorre quando candidatas ou mandatárias, na maioria das vezes muito bem assistidas pelos homens dos seus respectivos partidos, defendem e votam pautas contrárias aos interesses das mulheres em sentido estrito. Embora seja mais “benéfico” se aliar às pautas hegemônicas, essa articulação não produz os efeitos necessários no que tange à concretização dos direitos das mulheres. 

Concebemos, dessa forma, um cenário democrático que integre todas as mulheres, de maneira transversal, inclusiva e com atenção às interseccionalidades de gênero, sexualidade, raça e classe. A participação equitativa e substantiva de mulheres na política aponta, no sentido de indicar um desabrochar, a eficácia da democracia e dos Direitos Humanos das mulheres.

O Instituto Aurora atua pela promoção e defesa da Educação em Direitos Humanos. Conheça os nossos projetos em prol da igualdade de gênero.

Acompanhe o Instituto Aurora nas redes sociais: Instagram | Facebook | Linkedin | Youtube

]]>
18 de Maio: Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes https://institutoaurora.org/18-de-maio-dia-nacional-de-combate-ao-abuso-e-a-exploracao-sexual-de-criancas-e-adolescentes/ Wed, 15 May 2024 19:13:36 +0000 https://institutoaurora.org/?p=237812 O abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes consistem em violações aos direitos humanos e também no descumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Por Mayumi Maciel, para o Instituto Aurora

A Lei Federal 9.970, de 2000, instituiu o 18 de Maio como Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Infelizmente, esse tipo de violência continua ocorrendo diariamente no Brasil. Vamos entendê-la em mais detalhes e conhecer campanhas que abordam o tema.

O que vamos abordar neste artigo:

Publicado em 15/05/2024.

Dados sobre abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil

Os números referentes a abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil são alarmantes, o que reforça a importância de falarmos sobre o tema.

De acordo com o “Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023”, a maioria dos casos de estupro no país são os estupros de vulnerável – menores de 14 anos ou pessoas incapazes de consentir por outros motivos, como deficiência e enfermidade -, que correspondem a 75,8% do total de casos registrados. O documento revela ainda que aproximadamente 8 em cada 10 vítimas de violência sexual são menores de idade.

Ainda sobre esse tipo de violência, a maioria dos agressores de crianças entre 0 e 13 anos eram familiares (64,4%) e conhecidos (21,6%) das vítimas. E a maioria dos casos (71,6%) ocorrem dentro da própria casa.

O Anuário também traz dados sobre os casos de  imagens de abuso e exploração sexual infantil e exploração sexual de vítimas de até 17 anos. Os dois crimes tiveram crescimento em 2022, comparando com 2021, de 7,0% e 16,4%, respectivamente.

A plataforma ObservaDH, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, reúne informações sobre violações de direitos humanos em diversos recortes populacionais. De acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, foram registradas 42.098 notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes, no ano de 2022. Isso dá uma média de 115 casos por dia.

Em relação ao ambiente digital, a Safernet divulgou ter recebido um recorde de denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil online, no ano de 2023. Foram 71.867 denúncias, que ultrapassaram a marca histórica anterior, registrada em 2018, de 56.115 denúncias.

18 de Maio: Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes

Em 2024, a lei que instituiu o 18 de Maio como Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes completa 24 anos. A data foi escolhida em memória ao caso de Araceli Crespo, que foi sequestrada, violentada e cruelmente assassinada em 18 de maio de 1973, quando tinha 8 anos de idade.

Neste ano, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania realiza campanha com o mote “Quebre o ciclo da violência”. O objetivo é sensibilizar a sociedade civil a não se calar diante de sinais de violência sofrida por crianças e adolescentes.

Denúncias sobre violações podem ser feitas pelo Disque 100, que funciona todos os dias, 24 horas por dia.

Campanha Faça Bonito

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) estabeleceu, pela resolução nº236 de 18 de maio de 2023, a campanha “Faça Bonito. Proteja nossas crianças e adolescentes” e a flor amarela e laranja como símbolos oficiais do enfrentamento ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes em todo o território nacional.

A resolução também traz algumas ações que devem ser desenvolvidas para conscientização e enfrentamento do problema:

  • Mobilização e sensibilização social, com atos de rua, caminhadas ou outras iniciativas, com a participação e o protagonismo de crianças e adolescentes;
  • Ação política, com audiências públicas no Congresso Nacional, nas Assembleias, Câmaras e Tribunais, ou outras iniciativas semelhantes, para demandar ou avaliar as ações, planos, políticas e equipamentos com atuação de equipes técnicas e profissionais especializadas, e com orçamento público adequado;
  • Diálogos, formações e orientações técnicas, com realização de seminários, oficinas, rodas de conversa, entre outras iniciativas, organizados pelos comitês, redes, fóruns e Conselhos de Direitos e Tutelares sobre a temática da violência sexual contra crianças e adolescentes, dialogando e construindo estratégias para efetivação de direitos.

Maio Laranja

A campanha Maio Laranja tem como objetivo a conscientização e efetivação de ações relacionadas ao combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes, e foi instituída pela lei nº14.432, de 3 de agosto de 2022.

A lei prevê ações como iluminação de prédios públicos na cor laranja, promoção de atividades educativas e veiculação de campanhas de mídia e informação sobre o tema.

Como a educação em direitos humanos pode contribuir no combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil

O abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes consistem em graves violações aos direitos humanos e também no descumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

A educação em direitos humanos contribui para que crianças e adolescentes conheçam seus direitos e possam entender quando eles estão sendo violados. A educação sexual é uma importante aliada para auxiliar na identificação de violência sexual.

A educação em direitos humanos também contribui para a construção de uma cultura de direitos humanos, na qual nos preocupamos com as violações de direitos de outras pessoas. Assim, pessoas adultas podem ficar mais atentas a sinais de violência sofridos por crianças e denunciar.

O Instituto Aurora atua na promoção e defesa da educação em direitos humanos. Saiba mais na seção “Quem somos”.


Acompanhe o Instituto Aurora nas redes sociais: Instagram | Facebook | Linkedin | Youtube

]]>
Desigualdade de gênero no mercado de trabalho: como mudar esse cenário? https://institutoaurora.org/desigualdade-de-genero-no-mercado-de-trabalho/ Wed, 01 May 2024 23:46:00 +0000 https://institutoaurora.org/?p=237778 A desigualdade de gênero no mercado de trabalho se apresenta em diversas situações: diferença salarial, menor acesso a posições de liderança, maior taxa de informalidade, entre outras. Vamos entender as raízes desse problema e possíveis soluções.

Por Instituto Aurora

(Foto: Israel Andrade / Unsplash)

Um dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU fala especificamente sobre alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as meninas e mulheres – o ODS 5.

Para alcançar essa igualdade, é preciso passar por diversos aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais de nossa sociedade. A questão da desigualdade de gênero no mercado de trabalho é um desses aspectos, como podemos observar em uma das metas do ODS 5:

5.5 Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública.

Vamos entender as raízes desse problema e pensar em soluções?

O que vamos abordar neste artigo:

Publicado em 01/05/2024.

A desigualdade de gênero no mercado de trabalho brasileiro

O estudo “Estatísticas do gênero”, divulgado pelo IBGE em abril de 2024, traz uma análise interseccional relacionada a diversas questões de desigualdade de gênero. A pesquisa constatou que mulheres pretas ou pardas são as mais afetadas pelas desigualdades na educação, na renda, no mercado de trabalho e na representatividade política.

Os dados sobre participação no mercado de trabalho revelam que a taxa de participação de mulheres na força de trabalho foi de 53,3%, enquanto a dos homens foi de 73,2%. Esse dado está relacionado a outra informação do estudo: mulheres dedicam quase o dobro de tempo do que homens com cuidados de pessoas e / ou afazeres domésticos.

Essa alta carga em afazeres domésticos influencia ainda a jornada de trabalho, a taxa de desocupação e a taxa de informalidade. Por isso, ela também é um ponto de destaque no ODS 5, como podemos ver na seguinte meta:

5.4 Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais

Quais as raízes da desigualdade de gênero no mercado de trabalho

O machismo estrutural é um dos fatores que está na raiz da desigualdade de gênero no mercado de trabalho. O machismo se refere às normas e práticas sociais que perpetuam a crença na superioridade masculina e na subordinação feminina. Assim, em uma sociedade machista, os estereótipos de gênero prevalecem, considerando as mulheres como menos capazes para certas posições de trabalho, especialmente as de liderança – que são as que oferecem melhores salários.

O machismo estrutural também orienta meninas às atividades de cuidado e os meninos às atividades de outra ordem. Isso se reflete no futuro, na hora da escolha do curso de graduação, profissão, entrada no mercado de trabalho e salário.

Em um mundo que fomenta o crescimento de áreas de STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática), com os empregos e salários mais competitivos neste setor, quem tendem a ser os maiores beneficiados? Nessa lógica apresentada, os homens.

De fato, segundo dados do Censo da Educação Superior de 2022, as mulheres eram maioria dos concluintes de cursos presenciais de graduação, representando 60,3%. Mas nos cursos das áreas de STEM, elas representam apenas 22% das pessoas que estavam se formando.

É importante destacar também a interseccionalidade de gênero com outros marcadores identitários, reconhecendo que as mulheres enfrentam diferentes formas de discriminação com base em sua raça, etnia, orientação sexual, entre outros fatores. Mulheres negras e mulheres trans, por exemplo, enfrentam barreiras adicionais que ampliam a disparidade de renda.

Qual o papel do Estado para mudar esse cenário

O Estado tem um papel importante para mudar esse problema. Aqueles que estão em posição de poder, representando o Estado, orientam também o posicionamento da sociedade. Logo, líderes políticos favoráveis à igualdade de gênero mandam uma mensagem para a sociedade, barrando de alguma forma a legitimação de ideias e práticas discriminatórias.

Recentemente, foi sancionada a lei de igualdade salarial no Brasil. A lei por si só não resolve o problema, mas estabelece orientações para uma mudança efetiva. Além disso, cabe ao Estado promover políticas sociais e afirmativas, bem como leis, com a perspectiva de gênero para diminuir as desigualdades.

Alguns exemplos podem ser:

  • ampliação de creches públicas, possibilitando com que as mulheres contem com esse serviço para que possam trabalhar período integral no mercado formal;
  • licença paternidade expandida, incentivando a divisão igualitária de responsabilidades de cuidado entre homens e mulheres, e possibilitando o retorno ao mercado de trabalho com qualidade por parte da mulher – se assim ela quiser;
  • promoção de cursos de aperfeiçoamento profissional alinhado com necessidades de mercado e também com desenvolvimento de habilidades para liderança, garantindo que a mulher tenha chances reais de acessar salários tão bons quanto os de seus colegas homens.

O papel da sociedade civil para combater a desigualdade de gênero no mercado de trabalho

Ao falarmos da necessidade de uma mudança cultural, ela precisa acontecer aliada à educação formal (aquela realizada em escolas e universidades) e à educação não-formal (aquela realizada em outros espaços, como mídia, indústria cultural etc).

A educação para igualdade de gênero e para o respeito aos direitos humanos é essencial para desconstruir estereótipos de gênero e promover uma cultura de respeito e igualdade.

É importante destacar também que as pautas feministas visam garantir direitos igualitários para todos e todas, sem ameaçar os direitos dos homens. Promover uma compreensão mais ampla e inclusiva das questões de gênero ajuda a superar resistências e avançar em direção à igualdade real.

E, ainda, precisamos reforçar o papel da sociedade civil em eleger mulheres que sejam favoráveis aos direitos das mulheres, a fim de que elas representem a população na proposição de leis e na oposição a discursos e decisões que possam ser discriminatórias.

O Instituto Aurora atua com a promoção e defesa da Educação em Direitos Humanos. Conheça nossas ações em prol da igualdade de gênero.

Acompanhe o Instituto Aurora nas redes sociais: Instagram | Facebook | Linkedin | Youtube

]]>
O que é capacitismo e como combatê-lo? https://institutoaurora.org/o-que-e-capacitismo-e-como-combate-lo/ Wed, 17 Apr 2024 11:24:00 +0000 https://institutoaurora.org/?p=237774 O capacitismo é a discriminação contra pessoas com deficiência, seja ela física, sensorial, mental ou intelectual. Essa discriminação pode se manifestar de diversas formas, desde atitudes sutis até barreiras estruturais que impedem a participação plena das pessoas com deficiência na sociedade.

Por Jaqueline Stramantino, para o Instituto Aurora.

(Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil)

Na franquia de filmes “Guerra nas estrelas” (“Star Wars” em inglês), o vilão impetuoso, Darth Vader, é amputado de ambas as pernas e do braço esquerdo. Porém, as pessoas com deficiência não estão somente nas telas do cinema. Entre os exemplos de personalidades mais conhecidas estão: A talentosa pintora mexicana, Frida Kahlo, que teve poliomielite na infância e sofreu um acidente de bonde aos 18 anos; o astrofísico Stephen Hawking, que tinha uma doença neurológica conhecida como esclerose amiotrófica lateral e o compositor e pianista alemão Ludwig van Beethoven, que era uma pessoa com deficiência auditiva.

Ao lembrar desses nomes você pode associar Darth Vader como o vilão mais temido do cinema ou Frida Kahlo pelas impressionantes pinturas que captam o seu sentimento, bem como sua relevância como mulher para época em que viveu, Hawking pela inteligência e descobertas que mudaram o percurso da física e Beethoven por revolucionar a música clássica. A primeira memória dessas pessoas não são suas deficiências, e sim seus marcos, a pessoa é muito mais que sua deficiência. E o preconceito contra a pessoa com deficiência é chamado de capacitismo.

O que vamos abordar neste artigo:

Publicado em 17/04/2024.

O que é capacitismo?

Na atual sociedade, em que valores como autonomia e independência são primordiais, uma parcela significativa da população enfrenta negligência em relação ao seu direito à participação e justiça social. O capacitismo é o preconceito e a discriminação enfrentados por pessoas com deficiência, surgindo da associação de sua existência à incapacidade e inferioridade. Esse fenômeno é enraizado em um modelo idealizado pela sociedade, que, na realidade, é uma construção social.

O capacitismo representa uma forma de preconceito, frequentemente perpetuado por aqueles sem deficiência, que julgam antecipadamente as capacidades e habilidades das pessoas com deficiência com base em suas próprias percepções. Assim, indivíduos que não se encaixam nos padrões ideais são rotulados como anormais, inferiores ou incapazes. Esse discurso capacitista alimenta a ideologia eugênica, que propõe a rejeição de seres humanos considerados inferiores, além de promover estereótipos negativos e a desvalorização das pessoas com deficiência, vistas como inúteis, improdutivas e indignas de respeito.

As causas do capacitismo

O capacitismo é um fenômeno complexo enraizado em diversas estruturas sociais, culturais e históricas. Suas causas são multifacetadas e interligadas, e entender essas origens é crucial para combater esse tipo de discriminação eficazmente. Entre algumas causas estão:

  • Modelo Médico e Deficiência: Tradicionalmente, a deficiência foi vista por um viés médico, em que as pessoas com deficiência eram consideradas como tendo um problema que precisava ser corrigido ou tratado. Esse modelo médico contribui para a percepção de que as pessoas com deficiência são incapazes ou deficientes em comparação com um padrão de normalidade.
  • Cultura do Desempenho e Produtividade: Vivemos em uma sociedade que valoriza a produtividade e o desempenho, muitas vezes medidos por padrões específicos de habilidades físicas e mentais. As pessoas com deficiência são frequentemente vistas como incapazes de atender a esses padrões, o que as torna alvos de preconceito e discriminação.
  • Estereótipos e Representações Negativas: A mídia, a cultura popular e outras formas de comunicação desempenham um papel significativo na perpetuação de estereótipos negativos sobre as pessoas com deficiência. Essas representações podem retratá-las como frágeis, dependentes, ou como objetos de piedade, reforçando a ideia de que são inferiores aos outros.
  • Falta de Acessibilidade e Infraestrutura Inclusiva: A falta de acessibilidade física e social é uma barreira significativa para a participação plena das pessoas com deficiência na sociedade. Quando espaços públicos, transporte, tecnologia e serviços não são projetados considerando as necessidades de todos e todas, as pessoas com deficiência enfrentam exclusão e marginalização.
  • Exaltação do Corpo considerado “Normal”: Existe uma valorização social do corpo “normal” ou padrão, que exclui automaticamente quem não se encaixa nesse padrão. O capacitismo surge da suposição de que as características físicas e mentais das pessoas que não se enquadram nesse ideal são inferiores ou indesejáveis.
  • Falta de Educação e Conscientização: Muitas pessoas não estão cientes das questões relacionadas à deficiência ou das formas como o capacitismo se manifesta em suas próprias atitudes e comportamentos. A falta de educação e conscientização contribui para a perpetuação de preconceitos e estereótipos prejudiciais.

Formas como o capacitismo se expressa

Desde estereótipos prejudiciais até a falta de acessibilidade e até mesmo a violência física, o capacitismo permeia muitos aspectos da vida das pessoas com deficiência. Ivan Baron, influenciador e ativista, descreve no Guia Anti-Capacitista que existem três tipos de capacitismo: médico, recreativo e institucional.

  • Capacitismo médico: Referir-se a uma pessoa com deficiência como se ela estivesse doente. Exemplo de falas: “Tenha fé que você vai ser curada!”, “Com tratamento médico, tem cura?”;
  • Capacitismo recreativo: Referir-se a uma pessoa com deficiência com piadas e estereótipos. As pessoas com deficiência são tratadas com piedade ou infantilizadas, diminuindo sua autonomia e dignidade. Esse tipo de comportamento pode incluir falar com elas condescendentemente, ignorar suas opiniões ou assumir que precisam de ajuda em todas as situações, mesmo quando não é o caso. Exemplo de falas: “Fico com medo de não conseguir fazer isso. Mas se até você conseguiu, né?”, “Agindo assim parece até um autista”, “Mais perdido que cego em tiroteio”, “Dar uma de João sem braço”;
  • Capacitismo institucional: Refere-se a falta de equidade referente a uma pessoa com deficiência. Nesse caso, a discriminação institucional em áreas como saúde, educação e justiça pode reforçar desigualdades e perpetuar o ciclo de marginalização das pessoas com deficiência. Exemplo de falas: “nós não temos rampas”, “o cargo oferecido na nossa empresa é destinado a pessoas sem deficiências”.

As formas como o capacitismo se expressa estão presentes no nosso cotidiano, na falta de acessibilidade. Quando os locais públicos, transporte, websites, documentos e outras formas de comunicação não são projetados com as necessidades das pessoas com deficiência em mente, elas enfrentam barreiras significativas para participar plenamente da sociedade. E isso é grave!

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as pessoas com deficiência têm menor acesso à educação e consequentemente dificuldade de posicionamento no mercado de trabalho e menor renda. Quantas pessoas com deficiência você conhece com cargos de liderança? Estima-se que 55% das pessoas com deficiência trabalham informalmente, sendo o rendimento médio de R$1.860, enquanto o rendimento das pessoas sem deficiência era de R$ 2.690.

Menos escolaridade, menos renda também significa menos lugar de fala. As pessoas com deficiência frequentemente enfrentam exclusão social e isolamento devido a percepções errôneas sobre suas capacidades ou necessidades.

Capacitismo no Brasil

No BBB 24, um atleta paraolímpico foi vítima de expressões depreciativas e tabus, que fomentaram as discussões sobre o capacitismo no Brasil. Se faz importante ressaltar que a deficiência não significa que a pessoa seja menos inteligente ou capaz do que qualquer outra, alguém não é inferior a você só porque tem deficiência e capacitismo é crime.

Desde a Constituição Federal de 1988, no artigo 23, parágrafo II, é especificado que é uma responsabilidade compartilhada entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, é garantir a saúde, assistência pública e proteção das pessoas com deficiência.

Entretanto, muito antes do termo “capacitismo”, a pessoa com deficiência teve uma mudança de paradigma, ganhando mais autonomia e acolhimento diante das leis. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) é um tratado internacional que reconhece as pessoas com deficiência como sujeitos de direitos e estabelece obrigações aos Estados para garantir sua plena participação na sociedade. A CDPD foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2006 e entrou em vigor em 2008. O Brasil ratificou a CDPD em 2008, tornando-se um dos primeiros países a se comprometer com a implementação de seus princípios. 

A CDPD é um marco legal na luta pelos direitos das pessoas com deficiência. Ela reconhece os direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais das pessoas com deficiência, e estabelece obrigações aos Estados para garantir que esses direitos sejam respeitados e protegidos. Assim, houve alguns avanços legislativos nas últimas décadas, como a lei de acessibilidade, lei de cotas e lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência ou Estatuto da Pessoa com Deficiência.

A Lei de Acessibilidade para Pessoas com Deficiência, (Lei nº 10.098/2000), representa um marco legislativo que visa garantir o acesso pleno e igualitário das pessoas com deficiência a espaços públicos, edifícios de uso coletivo, transportes e comunicações. A legislação estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade, visando eliminar barreiras físicas, arquitetônicas, urbanísticas, de transporte e de comunicação, assegurando a inclusão e a participação social desses indivíduos.

Uma das principais disposições da lei é a exigência de que os projetos de construção ou reforma de edifícios públicos, ou de uso coletivo incluam acessibilidade para pessoas com deficiência desde a fase inicial do planejamento. Isso engloba a construção de rampas, instalação de elevadores, adaptação de banheiros, sinalização tátil, entre outras medidas que garantam a acessibilidade universal.

Além disso, a Lei de Acessibilidade estabelece que os meios de transporte coletivo devem ser adaptados para garantir o acesso de pessoas com deficiência, seja por meio da disponibilidade de ônibus com rampas de acesso, vagões de metrô com espaços reservados ou outros recursos que facilitem a locomoção desses passageiros. No que se refere à comunicação, a legislação determina que as informações veiculadas em locais públicos devem ser acessíveis para pessoas com deficiência visual ou auditiva. Isso inclui a disponibilização de materiais em braile, audiodescrição, legendas em vídeos, intérpretes de Libras (Língua Brasileira de Sinais), entre outros recursos que garantam a compreensão e a participação plena dessas pessoas.

A Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência (Lei nº 8.213/1991) é uma legislação brasileira que estabelece a obrigatoriedade de as empresas com mais de 100 funcionários reservarem uma porcentagem de seus postos de trabalho para pessoas com deficiência. Essa lei visa promover a inclusão desses indivíduos no mercado de trabalho e combater a discriminação no ambiente profissional.

A lei determina que as empresas devem preencher uma cota que varia conforme o número total de funcionários. Para organizações que tenham entre 100 e 200 empregados, a cota é de 2% do total de funcionários. Já para empresas com mais de 1.001 empregados, a cota é de 5%. As empresas devem preencher essas vagas com pessoas que tenham algum tipo de deficiência, seja ela física, mental, intelectual ou sensorial.

Além de determinar a reserva de vagas, a Lei de Cotas estabelece que as empresas devem garantir condições adequadas para a inclusão das pessoas com deficiência no ambiente de trabalho. Isso inclui a adaptação dos postos de trabalho, fornecimento de equipamentos especiais, treinamento de funcionários e funcionárias e outras medidas que garantam a plena participação e o desenvolvimento profissional desses trabalhadores e trabalhadoras.

As empresas que não cumprem a lei estão sujeitas a penalidades, que incluem multas e outras sanções administrativas. É importante ressaltar que a fiscalização do cumprimento da lei é responsabilidade do Ministério do Trabalho e Emprego, que pode realizar fiscalizações periódicas e aplicar as penalidades previstas em caso de descumprimento.

Apesar de ser uma legislação importante para promover a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, a Lei de Cotas enfrenta desafios em sua implementação e efetividade. Muitas empresas ainda enfrentam dificuldades para cumprir a cota estabelecida, seja por falta de preparo para lidar com pessoas com deficiência, falta de recursos para adaptar os ambientes de trabalho ou por preconceitos e estigmas sociais relacionados à contratação desses profissionais.

 A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), popularmente conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, é uma legislação abrangente que estabelece direitos e garantias fundamentais para as pessoas com deficiência no Brasil. Essa lei representa um marco histórico na promoção da inclusão e na garantia dos direitos desses indivíduos, reconhecendo-os como sujeitos de direitos e assegurando sua participação plena e igualitária em todos os aspectos da vida.

A Lei de Inclusão é baseada em princípios fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, a igualdade de oportunidades, a não discriminação, a acessibilidade, a autonomia e a participação plena e efetiva na sociedade. O que possibilitou a incorporação dos instrumentos internacionais de Direitos Humanos ao sistema jurídico brasileiro.  Esses princípios norteiam todas as disposições da lei e orientam as ações do poder público e da sociedade, na totalidade, na promoção da inclusão das pessoas com deficiência.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência prevê medidas para a promoção da saúde, reabilitação, acessibilidade arquitetônica, transporte acessível, cultura, esporte, lazer, acesso à justiça e outros aspectos relevantes para a inclusão das pessoas com deficiência. Com 120 artigos, destaca-se acessibilidade (incluindo a digital), educação inclusiva, trabalho e emprego, apoio à vida independente.

Portanto, essas leis possibilitam o cidadão e a cidadã a viver de forma independente e exercer a cidadania e a participação social. Então, é fundamental que governos, empresas e sociedade civil trabalhem em conjunto para garantir o pleno cumprimento das leis, e para promover uma cultura de inclusão e respeito aos direitos das pessoas com deficiência. Somente através do compromisso e da cooperação de todos os setores da sociedade será possível construir um Brasil verdadeiramente acessível e inclusivo para todos.

Extremismo violento e capacitismo

O extremismo violento refere-se a ideologias extremistas que defendem o uso da violência para alcançar objetivos políticos, religiosos ou sociais. No contexto brasileiro, isso pode incluir grupos extremistas que buscam impor suas visões por meio da violência, do terrorismo ou da intimidação.

Embora o Brasil não tenha experimentado grandes movimentos extremistas violentos em comparação com outros países, ainda há preocupações com o aumento do extremismo e a radicalização online, especialmente em relação a questões políticas e sociais. Por outro lado, o capacitismo se manifesta de várias formas, incluindo falta de acessibilidade, estereótipos negativos, exclusão social, bullying e falta de oportunidades iguais no emprego, educação e outras áreas.

Embora o extremismo violento e o capacitismo possam parecer fenômenos distintos, eles compartilham semelhanças em termos de intolerância, exclusão e violação dos direitos humanos. Ambos os problemas representam desafios para a construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e igualitária no Brasil e exigem respostas eficazes por parte das autoridades, da sociedade civil e de todos os setores da sociedade.

O extremismo violento encontra terreno fértil em ambientes onde a intolerância e o ódio são disseminados. Nesse contexto, as pessoas com deficiência frequentemente se tornam alvos de discursos extremistas, sendo retratadas como vulneráveis, incapazes ou até mesmo como uma ameaça à “normalidade” pretendida pelos extremistas.

O extremismo violento e o capacitismo se alimentam mutuamente, criando um ambiente onde a intolerância e a discriminação são normalizadas. Por exemplo, discursos extremistas que promovem a superioridade de certos grupos sociais podem reforçar a visão capacitista de que as pessoas com deficiência são inferiores ou menos valiosas. Da mesma forma, o capacitismo pode servir de base para ideologias extremistas que buscam justificar a exclusão e a violência contra determinados grupos sociais.

Para combater esses problemas, é fundamental promover a educação, a conscientização e o respeito aos direitos humanos em todos os níveis da sociedade. Isso inclui a implementação de políticas públicas que garantam a inclusão e a acessibilidade para pessoas com deficiência, bem como medidas para combater o extremismo violento e promover o diálogo intercultural e inter-religioso. Somente por meio de esforços coordenados e comprometidos será possível construir uma sociedade mais inclusiva, justa e pacífica para todos os cidadãos e cidadãs brasileiros/as.

O Instituto Aurora lançou materiais gratuitos sobre discursos de ódio, extremismo e violência nas escolas. Você pode acessar na página do projeto “(Re)conectar”.

Como a educação em direitos humanos pode ajudar a combater o capacitismo

A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, adotada por todos os países da ONU em 2015, reconhece que a erradicação da pobreza e a promoção da prosperidade só podem ser alcançadas se todos os segmentos da sociedade tiverem oportunidades iguais. O ODS 10 é fundamental para alcançar esse objetivo, e o combate ao capacitismo é uma parte essencial desse processo. O combate ao capacitismo é uma ação crucial para alcançar esse objetivo, ao garantir que as pessoas com deficiência tenham acesso a oportunidades e participem da sociedade em igualdade de condições.

Assim, a educação em direitos humanos é fundamental para combater o capacitismo, ao fornecer as ferramentas necessárias para desconstruir estereótipos e promover a inclusão de pessoas com deficiência em todos os âmbitos da sociedade.  Através da educação, podemos:

1. Conscientizar sobre o capacitismo

  • Expor as raízes do preconceito: A educação em direitos humanos pode revelar como o capacitismo está enraizado em nossa sociedade, desde a discriminação individual até as barreiras estruturais que impedem a participação plena de pessoas com deficiência.
  • Desconstruir estereótipos e crenças negativas: Através da educação, podemos desafiar a ideia de que pessoas com deficiência são menos capazes ou inferiores, promovendo uma visão baseada na igualdade e no respeito à diversidade.
  • Promover a empatia e a compreensão: Ao colocar as pessoas em contato com diferentes realidades, a educação em direitos humanos pode fomentar a empatia e a compreensão das necessidades e desafios enfrentados por pessoas com deficiência.

2. Empoderar pessoas com deficiência

  • Ensinar sobre seus direitos: A educação em direitos humanos pode informar pessoas com deficiência sobre seus direitos assegurados por lei, como o direito à educação, saúde, trabalho e participação social.
  • Desenvolver habilidades de autoadvocacia: Através da educação, pessoas com deficiência podem adquirir ferramentas para defender seus direitos e lutar por sua inclusão na sociedade.
  • Promover o protagonismo: A educação em direitos humanos pode incentivar a participação ativa de pessoas com deficiência na tomada de decisões que impactam suas vidas.

3. Transformar a sociedade

  • Promover a inclusão na educação: A educação em direitos humanos pode contribuir para a construção de um sistema educacional verdadeiramente inclusivo, que atenda às necessidades de todos os alunos e alunas, independentemente de suas capacidades. No nosso blog temos um artigo detalhado sobre esse assunto: Educação de pessoas com deficiência no Brasil: por que é importante falarmos a respeito?
  • Combater a discriminação no mercado de trabalho: A educação pode conscientizar empresas e empregadores sobre a importância da inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, combatendo a discriminação e promovendo a igualdade de oportunidades.
  • Construir uma sociedade mais justa e igualitária: A educação em direitos humanos é fundamental para construir uma sociedade que valorize a diversidade e garanta os direitos de todas as pessoas, incluindo as com deficiência.

Exemplos de ações

  • Implementar programas de educação em direitos humanos nas escolas, universidades e empresas: A implementação de programas de educação em direitos humanos nas escolas, universidades e empresas é crucial para combater o capacitismo e promover a inclusão de pessoas com deficiência. Tais programas devem ser cuidadosamente elaborados e implementados para garantir sua efetividade e impacto positivo.
  • Capacitar profissionais da educação para lidar com a diversidade e promover a inclusão de alunos e alunas com deficiência: Com estratégias para promover a inclusão de pessoas com deficiência em diferentes ambientes, como escolas, universidades e empresas, bem como promoção da acessibilidade e soluções para garantir a acessibilidade de pessoas com deficiência e realizar uma comunicação inclusiva de forma respeitosa e eficaz.
  • Realizar campanhas de conscientização sobre o capacitismo e a importância da inclusão: Através de ações criativas e inovadoras, podemos mobilizar a comunidade e construir um futuro mais inclusivo para todos e todas. Exemplo disso é a campanha “Combata o capacitismo” lançada pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, através da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência
  • Incentivar a participação de pessoas com deficiência na vida política e social da comunidade: Ter voz nas decisões que impactam suas vidas e garantir que suas necessidades sejam consideradas, através do desafio de estereótipos e promoção da mudança de atitudes em relação à deficiência, compartilhando suas habilidades, conhecimentos e experiências para o bem comum, com novas perspectivas e ideias para o debate público.

O combate ao capacitismo e o Instituto Aurora

O capacitismo nega às pessoas com deficiência o direito à vida independente, à educação, à saúde, ao trabalho, à participação social e à igualdade de oportunidades. Barreiras físicas, atitudinais e comunicacionais impedem o pleno exercício desses direitos, perpetuando a exclusão e a desigualdade.

Nós do Instituto Aurora acreditamos que o capacitismo viola os princípios fundamentais dos direitos humanos. A luta por direitos humanos é, por sua vez, uma luta por inclusão e igualdade, e isso inclui o combate ao capacitismo em todas as suas formas, pois apesar dos avanços, ainda há um longo caminho a ser percorrido.

O combate ao capacitismo é fundamental para construirmos uma sociedade justa, inclusiva, que respeite os direitos humanos de todas as pessoas. Através da educação, da conscientização e da ação conjunta, podemos construir um futuro, no qual, a diversidade seja valorizada e todas as pessoas tenham as mesmas oportunidades de desenvolvimento e realização.

Juntos e juntas, podemos construir um mundo anti-capacitista, onde a equidade, a autonomia, a não-discriminação e a justiça sejam realidade para todas as pessoas. Cada pequena mudança faz a diferença. Ao agir em seu dia a dia, você pode contribuir para a construção de um mundo onde todas as pessoas tenham as mesmas oportunidades e sejam valorizadas por suas habilidades e contribuições.

Saiba mais sobre nossas ações e projetos em prol do ODS 10.

Acompanhe o Instituto Aurora nas redes sociais: Instagram | Facebook | Linkedin | Youtube

]]>
“Nas asas da Pan Am”: história, política, memória https://institutoaurora.org/resenha-nas-asas-da-pan-am/ Wed, 03 Apr 2024 20:43:30 +0000 https://institutoaurora.org/?p=237765 “Nas asas da Pan Am”, documentário autobiográfico de Silvio Tendler, aborda a vida do diretor, acontecimentos históricos e políticos que presenciou, e fala sobre memória.

Por Mayumi Maciel, para o Instituto Aurora.

“Nas asas da Pan Am” é um documentário autobiográfico de Silvio Tendler, lançado em 2020, na ocasião do aniversário de 70 anos do diretor. O longa aborda diversos momentos da vida do cineasta, no Brasil e em outros países, como Chile, França, Cuba, União Soviética e Alemanha Oriental.

Pan Am foi uma companhia aérea que existiu até 1991, e tinha rotas que operavam internacionalmente conectando cidades de todo o mundo. Silvio Tendler fala sobre ter visto um cartaz em que estava escrito: “União Soviética e Pan Am”. Comenta que ambas acabaram antes da virada do século, e isso acabou sendo a origem da ideia do documentário.

“Nas asas da Pan Am” é o filme de abertura da 13ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos, que em 2024 tem o diretor como principal homenageado. O tema do ano é “Vencer o ódio, semear horizontes”.

Publicado em 03/04/2024.

Um breve resumo do documentário “Nas asas da Pan Am”

“Nas asas da PanAm” apresenta diversos materiais produzidos por Silvio Tendler ao longo de sua trajetória. Há muitas fotografias – sendo que ele iniciou sua carreira como fotógrafo -, além de entrevistas, depoimentos e registros em vídeo de caráter profissional ou pessoal.

Durante o longa, o diretor vai abordando momentos de sua vida e conectando com fatos históricos e políticos, de forma quase sempre linear. Sabemos um pouco da vida dos pais, dos avós, da infância e adolescência de Silvio Tendler. Seu envolvimento com o cinema começou com o Movimento Cineclubista, nos anos 1960.

O cineasta esteve em auto exílio nos anos 1970, no Chile. Depois disso, estudou cinema em Paris, esteve em Portugal, Cuba, União Soviética e na Alemanha durante a Guerra Fria.

“Nas asas da Pan Am” também mostra alguns bastidores de seu trabalho como documentarista, inclusive sobre um material perdido de uma entrevista com João Cândido, conhecido como o Almirante Negro. Em sua carreira, Silvio Tendler conta com mais de 70 filmes, entre eles os documentários de maior audiência do cinema brasileiro: “O Mundo Mágico dos Trapalhões”, com 1,3 milhão de espectadores, “Jango”, com 1 milhão, e “Os Anos JK”, com 800 mil.

Ao final do filme, Silvio Tendler faz, ainda, diversas homenagens: a amigos, às mulheres com as quais se relacionou e aos cineastas que lhe influenciaram e ajudaram em sua formação.

Memória pessoal, memória coletiva

A questão da memória aparece com bastante importância no documentário. O filme acaba sendo uma forma de preservar a memória da vida e obra do diretor, do que ele viveu profissionalmente e também em sua vida pessoal.

Em determinado ponto, o cineasta entrevista um neurocirurgião que diz que a memória constitui a nossa personalidade, o nosso “eu”. É a partir da memória do que vivemos que nos reconhecemos e nos identificamos em nossas individualidades.

Para além da questão da memória pessoal, de caráter individual, também podemos refletir, a partir do documentário, sobre a memória coletiva. Ao apresentar momentos históricos e políticos, seja do Brasil ou de outros países, o filme nos convida a relembrar o nosso passado – e a não esquecê-lo.

Em períodos como o que estamos vivendo, de crescimento de discursos autoritários e antidemocráticos, é preciso, enquanto sociedade, conservarmos a memória do passado. Para que esse passado não seja distorcido ou encarado de forma leviana, e para que os erros do passado não sejam repetidos.

Se a partir da memória pessoal nos identificamos enquanto indivíduos, a partir da memória coletiva podemos nos identificar enquanto sociedade – e, com isso, refletirmos de forma consciente sobre o futuro que desejamos construir.

Acompanhe o Instituto Aurora nas redes sociais: Instagram | Facebook | Linkedin | Youtube

]]>
Justiça para quem? Reflexões acerca do acesso à Justiça no Brasil https://institutoaurora.org/reflexoes-acerca-do-acesso-a-justica-no-brasil/ Wed, 27 Mar 2024 11:03:00 +0000 https://institutoaurora.org/?p=237761 Considerando que não há construção de sociedade democrática e equitativa ou que se volte à concretização dos Direitos Humanos sem justiça efetiva, este artigo se propõe a abordar algumas das principais discussões sobre o Acesso à Justiça no Brasil, incluindo nelas a seletividade do judiciário e a necessidade de justiça de transição após períodos autoritários e ditatoriais.

Por Gabriela Assad, para o Instituto Aurora

(Foto: Pedro França / Agência Senado)

A noção de Justiça tal como conhecemos é um princípio da modernidade. Na Grécia antiga, tinha-se por costume realizar justiça com as próprias mãos, daí o ditado popular “olho por olho, dente por dente”. Com a passagem da justiça privada para a justiça pública e, especialmente após as concepções mais modernas de formação do Estado, foram instituídos alguns princípios fundamentais para sua plena e eficaz realização.

No entanto, embora existam normas internacionais e mecanismos jurídicos internos que garantam o acesso à justiça de forma eficiente e equitativa, a dificuldade no acesso aos meios judiciais – bem como nas garantias individuais durante o processo – é flagrante. Nesse sentido, é necessário analisar suas causas e consequências à efetivação da democracia.  

Para isso, em um primeiro momento, vamos nos debruçar sobre a definição do acesso à justiça, seus principais fundamentos dentro do Estado Democrático de Direito brasileiro e demais direitos vinculados a ele. Apontaremos, em seguida, o direito ao acesso à justiça como um direito humano e, por consequência, a ausência dele como uma violação de direitos humanos, principalmente no que tange a seletividade judicial. 

Na sequência, para fundamentar essa perspectiva, serão apresentados alguns entendimentos jurisprudenciais da Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos em condenações ao Brasil por violação ao acesso à justiça. 

Com o intuito de provocar a reflexão acerca do acesso à justiça em contextos de transição democrática e/ou após governos autoritários, o último tópico aborda a posição do Brasil, especialmente após a promulgação da Lei de Anistia (Lei 6.683/79), na perseguição dos direitos à verdade, memória e justiça.

Tópicos deste artigo:

Publicado em 27/03/2024.

O que é Acesso à Justiça?

O Acesso à Justiça é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), no qual todas(os) as(os) cidadãs(ãos) podem invocar seus direitos e liberdades (artigo 2°, DUDH/48), recorrer às jurisdições nacionais competentes em caso de atos atentatórios a eles (artigo 8°, DUDH/48) e ter sua causa julgada por um tribunal independente e imparcial (artigo 10°, da DUDH/48). 

Na prática, garante que qualquer pessoa possa acessar aos instrumentos judiciais caso se sinta lesada e/ou diante de clara violação – ou ameaça de violação – de direitos fundamentais.

Em âmbito interno, esse direito fundamental, que também é um princípio dentro ordenamento jurídico do Estado Democrático de Direito – denominado de Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição –, está previsto no artigo 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal (1988). Segundo esse dispositivo, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.  

Desse modo, entendamos o acesso à justiça como um direito que possibilita dar vasão aos demais direitos. Dito de outro modo, a tutela judicial, sem empecilhos e com as devidas garantias, permite que seja pleiteada a efetivação de um direito violado ou sob risco de violação. 

Ressalta-se que o acesso à justiça não diz respeito apenas ao simples acesso aos meios judiciais, mas também – e principalmente – sobre o acesso justo e equitativo aos recursos. Portanto, quando há, durante o processo, graves vícios processuais, ou seja, identificação de alguma irregularidade, também há violação ao acesso à justiça, ainda que inicialmente a demanda tenha sido deferida/aceita. 

Podemos citar como exemplo um julgamento e/ou a sentença sendo proferida por um juiz incompetente – violação às regras de distribuição de competência processual, em razão da matéria, pessoa/função ou território – ou, ainda, a obtenção de provas por meios ilícitos (não observância do art. 5°, LVI, CF/88).

Nesse sentido, existem outros direitos/princípios que podemos chamar de correlatos ao Acesso à Justiça, ou seja, que são relacionados e, ao mesmo tempo, condicionantes à eficácia do acesso à justiça. São eles: 

  • Princípio da Igualdade (art. 5°, caput, CF/88): também chamado de princípio da isonomia ou, ainda, paridade de armas, aponta a necessidade de as partes serem tratadas de maneira igualitária durante o processo, com todos os direitos e garantias à elas inerentes;
  • Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa (art. 5°, LV, CF/88): Enquanto o contraditório refere-se à necessidade de conhecer, dentro de um processo, as alegações da parte contrária para que, a partir disso, a defesa possa ser requisitada, a ampla defesa oferece meio substantivo/material ao primeiro – é a garantia do direito de defesa;
  • Princípio do  Devido Processo Legal (art. 5°, LIV, CF/88): visa a garantia de todos os procedimentos legais adequados. É efetivado apenas pela realização dos demais princípios constitucionais e direitos individuais em âmbito processual; 
  • Princípio do Juiz Natural (art. 5°, XXXVII c/c LIII, CF/88): ao vedar a existência de tribunal de exceção, garante a distribuição à juízo adequado de acordo com a demanda proposta. Assegura a imparcialidade do judiciário; 
  • Princípio da duração razoável do processo (art. 5°, LXXVIII, CF/88): garante a todos a razoável duração da prestação jurisdicional – não necessariamente no menor tempo, mas no tempo adequado à satisfação da demanda; 
  • Princípio da Publicidade (art. 5°, LX, CF/88): determina que, salvo situações que justifiquem sigilo, a publicidade seja regra nos atos processuais e administrativos.

Diante da notória importância da garantia do Acesso à Justiça, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU) no âmbito da Agenda 2030, possuem, no ODS 16, a defesa da Paz, Justiça e Instituições eficazes

O objetivo, segundo a Organização, é fomentar a construção de “sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável” (ONU, 2015), bem como desenvolver o acesso à justiça de maneira eficaz, inclusiva e responsável. Ao ressaltar a importância de instituições inclusivas, a meta 16.3 defende a garantia da igualdade no acesso à justiça e a promoção do Estado de Direito. 

No entanto, apesar da relevância, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) afirmou que a meta global está “fora dos trilhos”, uma vez que, aproximadamente, 250 milhões de pessoas vivem em situações de extrema injustiça (ONU, 2023). A maior vulnerabilidade no acesso à justiça está entre mulheres e crianças. 

Acesso à Justiça como Direito Humano

Conforme explicitado acima, o Acesso à Justiça possui fundamento nos artigos 8° e 10°, da DUDH. Do mesmo modo, a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), em seu artigo 8°, 1, reconhece que “toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei” (CADH, 1969). 

Tal artigo menciona, indiretamente, alguns direitos – apontados anteriormente – como relacionados ao acesso à justiça, como a igualdade, o devido processo legal e a duração razoável do processo. A última parte dessa citação, “estabelecido anteriormente por lei”, também faz menção ao Juiz Natural, o qual aponta a necessidade de existência prévia do juízo. 

Alguns instrumentos internacionais de proteção em Direitos Humanos, em especial os de atenção às minorias, mencionam a necessidade de proteção do acesso à justiça na efetivação desses direitos. 

Válido mencionar que tais convenções, embora sejam internacionais, entram em território brasileiro com o status de Emenda Constitucional (art. 5°, §3°, CF/88). Isso significa dizer que tais documentos passam a possuir o mesmo patamar normativo, ou seja, a mesma hierarquia, da Constituição. 

Exemplo disso é a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), também conhecida como Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo decreto n° 1973/96, cuja disposição no artigo 7, f, indica a instauração de “procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeitada a violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos”. 

Do mesmo modo, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007), ratificada internamente mediante decreto n° 186/08, determina, no artigo 13, que os Estados partes assegurem o amplo acesso das pessoas com deficiência aos mecanismos judiciais, em condições igualitárias e, se for esse o caso, com as adaptações adequadas. 

Embora essas convenções estejam vinculadas, em especial, às mulheres e às pessoas com deficiência, ao realizar uma análise extensiva, conseguimos inferir que a garantia de proteção e dignidade mediante o acesso à justiça deve se estender a todas as pessoas integrantes de grupos vulnerabilizados, tais como pessoas negras, LGBTQIAP+, indígenas, quilombolas, migrantes, etc.

Nesse sentido, o artigo 5°, LXXIV, da Constituição, aponta a prestação jurisdicional integral e gratuita aos hipossuficientes como direito individual fundamental – e, na maioria dos casos, a hipossuficiência está atrelada a outra forma de discriminação. As Defensorias Públicas, da União (DPU) ou Estaduais (DPE), possuem papel fundamental na salvaguarda desse direito. 

De acordo com o artigo 25, §1°, da CADH, a efetiva prestação jurisdicional é um mecanismo para evitar violações de Direitos Humanos. Do mesmo modo, obstáculos encontrados no acesso à justiça causam violações de direitos humanos, em especial, aos grupos já vulnerabilizados dentro da sociedade.

O não acesso à justiça: violação de Direitos Humanos

Embora seja uma norma internacional de Direitos Humanos – imperativa, portanto – e, internamente, exista a previsão constitucional do acesso à justiça, ainda existem muitos empecilhos a sua efetivação. Por empecilhos não nos referimos apenas aos relacionados à própria tutela jurisdicional, mas também às questões estruturais que a permeiam. 

A Justiça, simbolizada pela deusa grega Themis – muitas vezes representada com uma venda nos olhos para apontar a imparcialidade do judiciário –, não está isolada do restante da sociedade. As desigualdades de gênero/sexualidade, raça, classe, religião, nacionalidade ou qualquer outra, refletem na esfera jurídica. Mais ainda, são reforçadas por ela. 

De fato, um dos principais obstáculos enfrentados por quem acessa algum órgão do poder judiciário é a excessiva burocratização do sistema. A dificuldade no acesso às informações, o excesso de documentos requisitados, além do próprio linguajar jurídico – nos referimos ao temido “juridiquês” – são apenas alguns exemplos. Na realidade, essa burocracia visa, sobretudo, distanciar a população da compreensão da lei. 

No entanto, a maior preocupação se volta à seletividade na aplicabilidade do acesso à justiça, assim como ocorre em relação aos demais direitos humanos. A seletividade do judiciário, de modo a privilegiar uma pessoa, classe social ou raça em detrimento de outra – contrária ao senso juspositivista de imparcialidade –, além de impedir a efetiva prestação jurisdicional, desacredita os órgãos de justiça. 

A máxima de que “não existe justiça no Brasil”, longe de demandar equidade e eficaz aplicação jurisdicional, reflete o punitivismo enraizado na sociedade. Isso porque as instituições já aplicam as sanções mais severas a determinados grupamentos sociais, sendo, inclusive, voltadas exclusivamente às penas privativas de liberdade. Exemplo disso é o encarceramento em massa da população negra, o qual funciona com uma lógica racista e eugenista. 

De acordo com a Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN, 2023), o Brasil possui o total de 644.305 pessoas aprisionadas. A maioria é formada por homens (95,75%), negros (67,78% no total, somando pretos e pardos), entre 18-29 anos (41,10%) e com ensino fundamental incompleto (46,54%). Desse quantitativo, ¼ (27,98%) é formado por presos provisórios. 

Neste caso, o princípio da presunção de inocência (art. 5°, LVII, CF/88) dificilmente é aplicado, principalmente se o fator raça estiver envolvido, uma vez que a culpabilidade já foi presumida – pelos órgãos aplicadores da lei e pela sociedade – independente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. 

Contrário a isso, crimes que, em sua maioria, envolvem grandes quantias de dinheiro, como corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, fraude, não possuem a punibilidade que crimes comuns contra o patrimônio possuem, como o furto. Diferentemente deste último – na maioria praticado por pessoas de baixa renda e/ou negras –, o que se conhece socialmente por “crimes de colarinho branco” são, em geral, cometidos por pessoas brancas e de classes sociais mais altas. 

Para Alves e Moreira (2021), no Brasil funciona uma “justiça bicromática”, onde os corpos negros estão nos bancos dos réus, nos presídios e são alvos das políticas de segurança pública – como aqueles que devem ser combatidos –, enquanto que os corpos brancos carregam os privilégios e ocupam os espaços de poder e decisão, inclusive no judiciário. 

Podemos exemplificar esse cenário com um julgamento ocorrido no Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), em 2020. Ao proferir sua decisão, a juíza justificou condenação do réu, acusado de associação criminosa, citando sua raça. Mais ainda, aumentou a pena do acusado por conta de suposta “conduta social”, embora essa não seja uma causa de aumento de pena presente no Código Penal. O Tribunal arquivou o caso.  

A crença na existência um estereótipo de “criminoso”, muito comum na sociedade e refletida na fala da juíza, possui origens no pensamento do psiquiatra higienista italiano Cesare Lambroso. Lambroso acreditava naquilo que ele denominou de “criminoso nato”, atribuindo determinadas características físicas à quem considerava possuir maior chance de cometimento de delito. Essas características, no entanto, tomaram contornos ainda mais racistas e eugênicos quando inseridas no contexto brasileiro. 

Tal inspiração positivista resultou num “reaparelhamento do judiciário” (Alves; Moreira, 2021), de modo a aumentar os instrumentos de repressão – que já integram o monopólio legítimo do Estado. Desse modo, a população negra é colocada no centro da suspeição criminal e/ou é exposta às violências praticadas pelos agentes públicos. 

O acesso à justiça, quando inserido na lógica da Biopolítica, encontra obstáculos e resistências por parte da própria estrutura que originou esse poder.  A biopolítica, cabe ressaltar, define campos de intervenção e instaura mecanismos de poder que possuem funções diversas das que inicialmente possuíam (Foucault, 1993). Os campos de intervenção utilizados, neste caso, são os aparelhamentos do Estado, incluído neles o judiciário.

Esse cenário evidencia a razão pela qual a demanda por “justiça” e punição, incluindo as discussões, por exemplo, de redução da maioridade penal e pena de morte, sempre visualiza corpos negros e periféricos. 

O racismo, assim como qualquer outra forma de discriminação negativa, tais como misoginia, homotransfobia, xenofobia e capacitismo, é um impedimento à justiça. Se a efetivação do acesso à justiça depende, além da tutela inicial, da garantia de procedimentos judiciais justos e equitativos, a seletividade no sistema de justiça brasileiro mina qualquer possibilidade de dar vazão a esse direito. 

Dessa forma, a limitação ou ausência do acesso à justiça, por este implicar em vários direitos correlatos, acarreta sistemática violação de Direitos Humanos realizada pelo próprio Estado. Tal cenário justifica a possibilidade de pleitear, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), o direito violado e a consequente responsabilização do ente. 

Entendimento jurisprudencial internacional sobre o acesso à justiça: condenações ao Brasil junto à CorteIDH

O Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos, representado pelas Nações Unidas, é composto por órgãos e mecanismos internacionais que garantem a aplicação dos Direitos Humanos. Visando ampliar sua efetividade, a ONU acabou por estimular a criação de Sistemas Regionais de Proteção em Direitos Humanos, por entender que a resposta para denúncias, apurações e responsabilização em caso de violações de DH poderia ser maior. 

Atualmente temos três sistemas: o Sistema Interamericano de Direitos Humanos – o nosso –, o Sistema Africano de Direitos Humanos e o Sistema Europeu de Direitos Humanos. Muito embora existam iniciativas para a concretização dos sistemas árabe e asiático de proteção aos DH, ainda enfrentam dificuldades. 

O Sistema Interamericano, do qual o Brasil faz parte, atua para garantir o cumprimento dos princípios e normas expressas na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). O Sistema é composto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a qual possui competência consultiva, e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), com competência jurisdicional. 

Para Piovesan (2012), os Sistemas regionais apenas são acionados quando o Estado se mostra falho ou omisso no dever de garantir direitos fundamentais aos cidadãos que estão sob a sua jurisdição. Ou seja, quando houver evidente violação a direito, desde que não reparado internamente. 

Para que se encaminhe um caso à CorteIDH, ele deve, inicialmente, passar pela Comissão, obedecendo todos os requisitos de admissibilidade previstos na CADH. Além do respeito ao prazo de 6 meses e ausência de litispendência internacional (quando dois processos correm simultaneamente em dois ou mais países), a CIDH admite casos em que houve esgotamento dos recursos internos, demora injustificada ou impedimento ao acesso às jurisdições internas

Após a análise desses requisitos, a Comissão pode ou não emitir um relatório com as devidas recomendações ao Estado. Caso entender necessário, a Comissão poderá submeter à Corte.

No Brasil, alguns casos possuem destaque no que diz respeito ao acesso à justiça, são eles:

Caso Damião Ximenes Lopes vs. Brasil

Damião era um paciente psiquiátrico e foi internado em um centro de atendimento particular, chamado Casa de Repouso Guararapes. Após três dias de internação, faleceu com evidentes sinais de agressões e maus tratos, de acordo com relatório emitido pela CIDH. Apesar de ser privado, o centro operava dentro da circunscrição do Sistema Único de Saúde – SUS.

No julgamento, a CorteIDH entendeu que o Estado tem o dever de garantir o efetivo acesso à justiça, assim como a celeridade da justiça para investigar e responsabilizar os envolvidos (CorteIDH, 2006). Cançado Trindade (2006), que proferiu voto à época, afirmou que ambos, o acesso à justiça e a pronta prestação jurisdicional, são indissociáveis

Ao final do julgamento, além das obrigações de reparar e indenizar as vítimas, a Corte definiu algumas medidas a serem cumpridas pelo Estado. Tais recomendações foram as primeiras, em âmbito regional, que se trataram especificamente dos cuidados com as pessoas com algum tipo de deficiência

Primeiro, o dever de cuidar, ou seja, a obrigação positiva de proporcionar condições dignas de vida às pessoas com deficiência. Segundo, o dever de regular e fiscalizar as instituições que prestem tais serviços de saúde, de modo que atuem com o devido respeito à vida e à integridade pessoal. Por fim, o dever de investigar, isto é, apurar, de maneira séria e efetiva, todos os fatos – atribuindo, aqui, responsabilização aos envolvidos, sejam eles agentes estatais ou não. 

Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil 

O caso retrata aquilo que comumente recebe a denominação de “operação policial”. Após duas operações, ocorridas na Favela Nova Brasília, localizada no Rio de Janeiro (RJ), entre os anos de 1994 e 1995, foram identificadas 26 mortes e 3 vítimas de violência sexual e estupro por parte dos policiais. Embora iniciadas as investigações pela Polícia Civil do RJ, não houve esclarecimento nem responsabilização. 

A Corte, diante do ocorrido, entendeu que as falhas na investigação constituem violação ao acesso à justiça, uma vez que impossibilitaram os avanços mínimos necessários ao caso. Além disso, ressaltou que a omissão do Estado em garantir um recurso efetivo contra atos que violem direitos humanos – direito à vida, integridade pessoal e dignidade – constitui, por si só, violação ao acesso à justiça (CorteIDH, 2017). 

As medidas de reparação indicadas pela Corte incluem obrigação de investigar e responsabilizar os envolvidos, a reabilitação para as vítimas – diretas e indiretas, com fornecimento de tratamento psicológico – e garantias de não repetição, com a adoção de políticas públicas e reformas legislativas, a fim de erradicar a impunidade da violência policial e promover a participação das vítimas na investigação. 

Cabe destacar que a Corte determinou que os conceitos de “oposição” ou “resistência” à atuação policial sejam abolidos dos relatórios de investigação em caso de lesão ou morte provocada pela ação policial – importante frisar esse ponto em virtude da revitimização constante, muito pela tentativa de justificar a violência policial com uma pretensa atribuição de culpabilidade. 

Justiça de transição, direito à memória e à verdade

Dentro do escopo do ODS 16, que se refere à Paz, Justiça e Instituições Eficazes, algumas metas foram elencadas como fundamentais para a concretização do objetivo. Assim, a meta 16.6 defende o desenvolvimento de “instituições eficazes, responsáveis e transparentes”, enquanto que a 16.10 reconhece a importância de assegurar o amplo “acesso público à informação” (ONU, 2015). 

Partindo dessa premissa, consideramos como fundamentais à concretização do acesso à justiça a informação e a transparência, razão pela qual a publicidade é um princípio fundamental em âmbito processual e rege os próprios atos da administração pública. Essa associação se deve ao fato de que, se uma pessoa não possui informações adequadas e verdadeiras sobre um fato, não há possibilidade de reclamar um direito. 

Nesse sentido, levantamos necessidade de discutir o acesso à justiça em contextos de governos autoritários ou períodos ditatoriais pregressos/anteriores. Como parte da formação da memória, a veracidade da informação é fundamental para a acepção da Justiça. Esta memória, contudo, permanece em disputa. 

Muitos períodos, como a Ditadura Civil-Militar (1964-1985), tendem a ser esquecidos, caso suas consequências não sejam cotidianamente lembradas. No entanto, é imprescindível ressaltar que esse “esquecimento” é uma decisão político-ideológica. Isso porque a memória e, por consequência, a ausência dela, é uma construção social – cuja formação varia conforme a conjuntura política. 

A história – que serve de alimento e base para a formação da memória –, pode ser interpretada e associada a diversas outras referências, mantendo ou modificando os fatos. Desse modo, a memória pode ser controlada e gerida através de discursos, instituições e/ou monumentos (lembremos das discussões acerca da estátua do Borba Gato, por exemplo).

Pollak (1989) entende que um passado que permanece mudo é mais fruto da gestão da memória feita pelos aparelhos de comunicação do que um mero produto do esquecimento. O que ocorre, em geral, é uma seleção da memória que será lembrada ou não.

Podemos colocar a Lei de Anistia (Lei n° 6.683/79) como produto dessa gestão. Passo inicial para transição “lenta e gradual” para a redemocratização, a promulgação da lei concedeu anistia a todos aqueles que foram considerados criminosos políticos ou conexos para o regime, não fazendo distinção entre os perpetradores das violências, que agiam em nome do Estado, e as vítimas. 

Para Oliveira e Reis (2020), o Estado brasileiro selecionou ideologicamente os fatos ocorridos no período e protegeu a memória que reproduz o pensamento socialmente hegemônico. 

A compreensão hegemônica do que foi esse período enxerga que não havia diferença entre as mobilizações de esquerda organizada e a repressão estatal a elas, de modo que seria melhor “deixar o passado no passado” – como se fosse possível ignorar todas as vidas perdidas durante o regime. Tal entendimento recebe a denominação de “Teoria dos dois demônios” (Oliveira; Reis, 2020). 

Embora a transição formal de um governo autoritário para um democrático tenha sido realizada, aqueles que, no período que compreendeu a lei (1961-1979), praticaram atos atentatórios contra a dignidade humana – especialmente aqueles que a praticaram em nome do Estado – não foram responsabilizados. A busca por Justiça de Transição surge dessa necessidade. 

De acordo com o Relatório S/2004/616, do Conselho de Segurança da ONU (2004), a justiça de transição funciona através de processos ou mecanismos, judiciais ou extrajudiciais, que possuem a intenção de resolver os problemas sociais derivados de um passado de abusos em grande escala. Envolve, segundo o relatório, a investigação, o ajuizamento de demandas, o ressarcimento dos danos e a própria reforma institucional. 

Nessa perspectiva, as Comissões Nacionais da Verdade (CNV), cumprem a função de reforço à memória e à verdade do período, confrontando e desmistificando as ideias hegemônicas de que, ambos os lados, resistência e Estado, possuíam paridade de armas.

Além disso, funcionam como medida restaurativa, demandando responsabilização aos perpetradores da violência, e preventiva, de modo a atuar para que os crimes cometidos à época não mais se repitam. 

O Brasil já realizou três Comissões da Verdade, duas no Governo Fernando Henrique Cardoso (1995 e 2001, respectivamente) e uma no Governo Dilma Rousseff. A última CNV – instaurada em 2012 e com relatório final publicado em dezembro de 2014 –, apontou a existência de “graves violações de direitos humanos” ocorridas na ditadura militar

Dentre as violações de direitos humanos apontadas pelo relatório estão as prisões arbitrárias, ofensas à integridade física e psicológica da pessoa detida, o desaparecimento forçado e a prática da tortura – em alguns casos resultando em morte. Esta última era parte da rotina administrativa do Estado e as próprias agências estatais obstaculizavam as investigações em caso de denúncias. 

Diante do entrave jurídico que a promulgação da lei de anistia ofereceu ao acesso à justiça daqueles que tiveram seus direitos violados durante o regime militar, o relatório do Comitê de Desaparecimento Forçado da ONU (2021) demonstrou preocupação relativa à falta de responsabilização em virtude da aplicação da legislação. Embora tenha se dirigido aos desaparecimentos forçados, tal entendimento é pacificado na organização. 

De acordo com jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento Herzog e outros vs. Brasil (2018), é dever do Estado investigar e responsabilizar as violações de direitos humanos ocorridas no período, não podendo estes invocarem lei de anistia ou similares como excludentes de responsabilidade para se escusar dessa obrigação. Mais, por se tratarem de crimes contra a humanidade, são imprescritíveis. 

Em síntese, a existência de legislação que, direta ou indiretamente, obstaculiza a responsabilização pelas violações de Direitos Humanos cometidas, constitui entrave ao pleno exercício do acesso à justiça. A gestão da memória e verdade, justamente pela ausência de reparação real e simbólica que produz, garante a permanência da seletividade do judiciário, ainda que em contextos democráticos.

 

Considerações finais

Diante do que foi abordado, percebemos que o amplo e equitativo acesso à justiça favorece a concretização dos valores democráticos e humanitários, além de permitir que cidadãs e cidadãos confiem na integridade do sistema judiciário. No entanto, existem alguns empecilhos à plena efetivação da justiça, especialmente no que tange às opressões institucionalizadas e à justiça de transição.

Nesse viés, é válido apontar algumas medidas como necessárias ao pleno e eficaz funcionamento dos mecanismos jurisdicionais, tais como o enfrentamento à seletividade e às discriminações negativas institucionalizadas – misoginia, racismo, capacitismo, xenofobia, intolerância religiosa, etc. – e  a  desburocratização dos procedimentos judiciais, podendo esta funcionar como consequência daquela, já que ambas nascem da mesma raiz. 

Consideramos indispensável, além disso, a garantia do acesso à justiça em situações de violações sistemáticas aos direitos humanos praticadas por governos autoritários e/ou ditatoriais anteriores, embora existam obstáculos oferecidos pelos próprios poderes do Estado – legislativo, executivo e judiciário – ao reivindicarem anistia. Dessa forma, os primeiros passos em direção à concretização do acesso à justiça e dos direitos humanos estarão satisfeitos.

O Instituto Aurora atua na promoção e defesa da Educação em Direitos Humanos. Conheça a nossa visão em prol de uma cultura de paz.

Acompanhe o Instituto Aurora nas redes sociais: Instagram | Facebook | Linkedin | Youtube

Outras referências usadas neste artigo:

FOUCAULT, Michel. Genealogía del racismo. La Plata, Argentina: Editorial Altamira, 1993.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos. San José, Costa Rica, 22 nov. 1969

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 5ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

]]>
Qual é a paz que buscamos para nós? Aprendendo sobre paz positiva https://institutoaurora.org/aprendendo-sobre-paz-positiva/ Wed, 13 Mar 2024 10:59:00 +0000 https://institutoaurora.org/?p=237714 Será que toda perspectiva de paz é igual? O que tem de diferente na paz positiva? Neste artigo vamos abordar sobre a paz positiva e sua relação com os direitos humanos. Se você nunca ouviu falar a respeito, fica aqui com a gente para aprender sobre o tema.

Por Maria Beatriz Dionísio, para o Instituto Aurora

(Foto: Mayumi Maciel / Instituto Aurora)

“O contrário da violência não é a não violência, o antídoto da violência é a inclusão social”

Cecília Minayo, socióloga

A pesquisadora Cecília Minayo, que investiga sobre o fenômeno da violência na sociedade, defende que a inclusão social, antídoto da violência, acontece através da melhoria das condições de vida da classe trabalhadora e da educação. De modo semelhante, o pesquisador Johan Galtung, pioneiro nos estudos sobre a paz, defendeu o mesmo. Para ele, os conflitos e violência são frutos de uma estrutura que promove desigualdades e injustiças sociais, portanto, é nela que deve morar a busca por soluções.

O que vamos abordar neste artigo:

Publicado em 13/03/2024.

Paz positiva e paz negativa: qual a diferença entre os conceitos?

Por muito tempo a ideia de paz estava associada a ausência de violência e conflitos, é daqui que surgiu o conceito de paz negativa. Já o termo paz positiva, é a busca pela integração da sociedade humana, o que significa a busca por mudanças profundas nas estruturas que promovem a violência nas relações sociais, sejam as desigualdades ou as violências culturais e promoção da educação. Ela é muito mais um processo do que uma meta, como o fim de guerras, por exemplo.

Paz positiva e Direitos Humanos

É exatamente nesse ponto que falar sobre paz positiva é também falar sobre a garantia dos direitos humanos. Em 1994, foi realizado o Fórum Internacional sobre a Cultura de Paz em San Salvador, El Salvador, onde ficou mais nítida a relação entre os direitos humanos e a paz, por se acreditar que este primeiro assegura as condições que todos os seres humanos precisam para viver com dignidade e paz.

O documento deste encontro fala sobre a paz e os direitos humanos serem indissociáveis, e que só é possível haver paz com o respeito e garantia destes direitos, para que se busque acabar com as desigualdades e violências praticadas. 

Como colocar em prática o conceito de paz positiva

Para Johan Galtung, a sobrevivência, bem-estar, liberdade e identidade são necessidades básicas. Somente uma cultura de paz permite que essas necessidades sejam satisfeitas e consideradas inegociáveis, o que exige também uma nova estrutura social, pautada no respeito à dignidade humana, justiça social e sustentabilidade ambiental. Mas isso não é um trabalho individual e, mais do que isso, pensar somente a nível pessoal não altera toda uma estrutura.

Assim como podemos aprender a nos comportar violentamente diante de conflitos, acreditamos que praticar a paz é também resultado de um processo de aprendizado. Para isso, trabalhar na construção de uma cultura de paz é uma maneira de escancarar as violências que silenciosamente corroem a humanidade e estimular a busca por novas formas de convivência.

Alguns objetivos a serem percorridos para estabelecer uma cultura de paz são:

  • Respeitar os valores tradicionais de respeito à vida, justiça, equidade, solidariedade, tolerância e os direitos humanos;
  • Lutar por políticas que assegurem justiça nas relações sociais e harmonia na relação do ser humano com a natureza;
  • Incluir elementos de paz e direitos humanos como características permanentes da educação, onde todos os meios de se educar sejam pautados nos valores básicos da cultura de paz;
  • Encorajar ações coordenadas em nível internacional para gerenciar e proteger o meio ambiente;
  • Aprender e usar novas técnicas de gerenciamento e resolução pacífica de conflitos

O ODS 16 na ONU fala sobre a construção e manutenção de uma cultura de paz. Além do já destacado aqui sobre como estabelecemos a paz positiva, cabe apontar que a construção de instituições eficazes também é importante para que não fiquemos suscetíveis a opressões e abusos de poder. Por isso, de acordo com as metas do ODS 16, é necessário:

  • Promover o Estado de Direito, em nível nacional e internacional, e garantir a igualdade de acesso à justiça para todos;
  • Reduzir substancialmente a corrupção e o suborno em todas as suas formas;
  • Garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis;
  • Assegurar o acesso público à informação e proteger liberdades fundamentais, em conformidade com a legislação nacional e os acordos internacionais;
  • Promover e fazer cumprir leis e políticas não discriminatórias para o desenvolvimento sustentável

Outras metas do ODS 16 você pode conhecer no artigo sobre o tema: ODS 16: pela construção e manutenção de uma cultura de paz.

Como a educação em direitos humanos pode contribuir para a paz positiva 

Para que essas metas possam ser alcançadas, sabemos que é necessária a formação de uma cidadania crítica e ativa, a qual a educação em direitos humanos tem por objetivo principal.

Não dá para construir uma cultura de paz sozinhos, por isso educar em direitos humanos para o desenvolvimento de atitudes de cooperação e solidariedade é tão fundamental. A educação em direitos humanos é essencial para se alcançar uma sociedade pautada na paz positiva. Como dissemos, a paz positiva é um processo contínuo, ela depende que todos e todas nós estejamos constantemente aprendendo sobre o viver em sociedade, sobre os nossos direitos e deveres, assim como também tenhamos o senso de responsabilidade permanentemente estimulado.

Conclusão

Respondendo à pergunta inicial, acreditamos que a paz que queremos não se resume apenas ao fim das guerras, mas que a garantia e educação dos direitos humanos nos ajude a construir um mundo pacífico, menos desigual e injusto socialmente. Aprendemos que a paz só é verdadeiramente alcançada quando fazemos dela um processo de romper com as estruturas que perpetuam domínio e exclusão, ela precisa ser construída em conjunto em diversas instâncias. A paz tem a ver com a promoção dos direitos, democracia, acesso à justiça e preservação do meio ambiente que vivemos. 

Pode parecer distante e utópico, mas a educação em direitos humanos nos ensina como a nossa participação nesse processo pode acontecer ao exercermos nossa cidadania, seja participando ativamente das decisões políticas, adotando uma postura crítica do mundo ao seu redor ou tendo um senso de responsabilidade ao tomarmos decisões.

Esse é um trabalho de cooperação mútua e solidariedade, aquilo que não está ao nosso alcance em mudar não significa, necessariamente, que devemos fechar os olhos, mas usar dos equipamentos democráticos que são de nosso direito para cobrar por essas mudanças. Assim como, também, adotar ao nosso contexto a promoção dos valores de uma cultura de paz.

Aqui no Instituto Aurora, promovemos ações e falamos sobre diversas formas de aprender acerca dos direitos humanos, consumir desse conteúdo, praticar e ajudar nessas ações pode ser um caminho de contribuir com a paz positiva. Conheça mais de nossas ações para promover uma cultura de paz.

Acompanhe o Instituto Aurora nas redes sociais: Instagram | Facebook | Linkedin | Youtube

Algumas referências que usamos neste artigo:

DISKIN, Lia. Vamos ubuntar? Um convite para cultivar a paz / Lia Diskin. – Brasília: UNESCO, Fundação Vale, Fundação Palas Athena, 2008.

MATIJASCIC, Vanessa. Pesquisas para paz e o ativismo da cultura da paz. 10° ENABED. 2018.

]]>
Qual a função de um Plano estadual de educação em direitos humanos https://institutoaurora.org/plano-estadual-de-educacao-em-direitos-humanos/ Wed, 06 Mar 2024 19:17:40 +0000 https://institutoaurora.org/?p=237707 Um Plano estadual de educação em direitos humanos é uma das formas que as unidades federativas podem garantir uma maior atenção ao tema. Mas, são todos os estados que possuem seus respectivos planos? E o que eles dizem?

Por Mayumi Maciel, para o Instituto Aurora

(Foto: Mérie Oliveira)

O Brasil possui um Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos desde 2003. Mas seria importante para a consolidação da EDH no país que cada unidade federativa tivesse um Plano estadual de educação em direitos humanos. Vamos entender a sua importância.

Tópicos deste artigo:

Publicado em 06/03/2024.

O que é um plano estadual de educação em direitos humanos

Um Plano estadual de educação em direitos humanos é um documento orientador para o tema naquela unidade federativa específica. Enquanto o Plano Nacional traz orientações gerais para todo o território brasileiro, um Plano Estadual entende as especificidades daquela região.

Por exemplo, o Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos da Bahia afirma, em sua introdução:

“[…]a construção do Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos buscou ser fiel às peculiaridades e anseios da sociedade civil baiana, procurando, ao mesmo tempo, assumir um caráter operacional, de modo a garantir a inserção desses anseios em um contexto de exeqüibilidade”

Essas orientações podem dizer respeito a ações e estratégias em ambientes de Educação Básica e de Ensino Superior, e também em outros espaços e para outros públicos além de estudantes, como a educação voltada para servidores públicos, a educação não formal, mídia e internet.

Qual a função de um Plano estadual de educação em direitos humanos

Durante as pesquisas do Instituto Aurora para o “Panorama da Educação em Direitos Humanos no Brasil”, verificamos em quais estados existe um plano estadual de educação em direitos humanos ou outro documento orientador para o tema. Esse foi um dos critérios para identificação do grau de institucionalização da EDH nos estados.

Esses Planos apresentam ações que devem ser realizadas em seus respectivos estados, para a consolidação da Educação em Direitos Humanos em diferentes ambientes. Os planos também podem apresentar quais são os órgãos responsáveis pela execução de determinadas ações.

A existência de um Plano Estadual de EDH contribui – mas não garante – para que ações de Educação em Direitos Humanos sejam uma política de Estado e não de governo. Na prática, isso nem sempre acontece.

Todos os estados têm um Plano estadual de educação em direitos humanos?

No Brasil, nem todos os estados possuem um Plano estadual de educação em direitos humanos. Dados levantados pelo Instituto Aurora, em 2022, para o “Panorama da Educação em Direitos Humanos no Brasil” constataram que apenas oito estados possuem planos estaduais de EDH; e outros 5 possuem planos em processo de articulação ou elaboração.

Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos da Bahia

Lançado em 2010, o Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos da Bahia segue os mesmos cinco eixos metodológicos do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos:

  • Educação Básica
  • Educação Superior
  • Educação dos Profissionais do Sistema de Justiça e Segurança
  • Educação e Mídia
  • Educação Não Formal

Em sua introdução, o Plano afirma que:

“educar para os direitos humanos implica também em garantir o próprio direito humano à educação com qualidade, em todos os níveis. Educar para os direitos humanos é uma ação necessária à concretização do próprio direito humano à educação, e significa, de fato, que a educação está sendo oferecida como deve ser, garantindo cidadania e fortalecendo o nosso processo democrático.”

Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos do Espírito Santo

O Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos do Espírito Santo foi publicado no Diário Oficial do Estado juntamente com o Programa Estadual de Direitos Humanos, em 2014. Os documentos são complementares.

Enquanto o Plano Estadual de EDH aborda os eixos metodológicos do Plano Nacional, o Programa Estadual de DH traz outros tópicos, como o direito à Educação, de forma geral; aspectos da educação para públicos específicos (como pessoas com deficiência, quilombolas); e também o contexto ampliado “Educação, Pesquisa e Cultura em Direitos Humanos”.

Além desses aspectos, em consultas públicas foram levantados também os seguintes temas, a serem abordados pela Educação em Direitos Humanos:

  • educação ambiental
  • educação para a consciência no consumo
  • educação para a paternidade e maternidade responsáveis e não violentas

Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos do Paraná

Publicado em 2015, o Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos do Paraná apresenta seis eixos essenciais:

  • Educação Básica
  • Ensino Superior
  • Educação dos Profissionais do Sistema de Justiça, Segurança e da Socioeducação
  • Educação Não Formal
  • Tecnologia e Dignidade Humana
  • Educação e Família

Em sua apresentação, o plano afirma que:

“Os principais desafios a serem enfrentados são o de reduzir a violência, promover uma cultura de paz e tornar a ‘educação’ o principal instrumento para o resgate e a disseminação de debates sobre os princípios condutores dos direitos estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em especial em seu Art. 26, o qual destaca que “[…] a educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz”.”

Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos de São Paulo

O Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos de São Paulo foi publicado em 2018. Ele segue os cinco eixos previstos no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, mas modificou o título de dois eixos, de forma a “assegurar a concepção que melhor retratam as ações no Estado de São Paulo”:

  • Educação Básica
  • Ensino Superior
  • Educação Popular em Direitos Humanos
  • Educação dos Profissionais dos Sistemas de Justiça e Segurança Pública
  • Educomunicação: Educação e Mídia

Em sua apresentação, o Plano traz algumas reflexões sobre as desigualdades no contexto brasileiro, que justificam a necessidade de uma Educação em Direitos Humanos. Algumas questões citadas são a alta taxa de feminicídio no país, violência doméstica contra crianças e adolescentes, a distribuição de renda, o crescimento do número de jovens mortos por armas de fogo no país.

Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos do Amapá

Publicado em 2021, o Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos do Amapá segue os eixos estabelecidos no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos e está organizado em três dimensões estratégicas, cada uma com respectivas diretrizes:

  • Gestão e normatização da política de educação em Direitos Humanos no conjunto da política estadual de educação
  • Instituir, por meio de projetos, programas e atividades programadas, a educação em direitos humanos como agenda transversal em todas as ações e serviços ofertados no âmbito da rede estadual de educação do Amapá
  • Articulação interinstitucional para estimular e promover a educação em direitos humanos junto a projetos e ações educativas realizadas por organizações governamentais, da sociedade civil e movimentos sociais com atuação na promoção e defesa de direitos de grupos, segmentos e populações em situação de vulnerabilidade, exclusão e violência

Em sua apresentação, o Plano afirma que seu objetivo é:

“subsidiar e orientar um conjunto de propostas que possibilitem tornar a escola espaço de inclusão e equidade no acesso aos direitos humanos e à democracia, respeitando as diferenças e necessidades de todos os grupos que protagonizam as relações do espaço escolar.”

Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos do Alagoas

O Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos do Alagoas foi publicado em 2019, seguindo os cinco eixos temáticos definidos pelo Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, mas buscando atender as “peculiaridades e anseios da sociedade civil alagoana”.

Na introdução, o Plano afirma que seu objetivo é:

“contribuir no processo de construção social e cidadã, através da implantação e implementação da Educação em Direitos Humanos nas Escolas do Estado de Alagoas, criando alternativas que possam viabilizar a sustentação e disseminação dos Direitos Humanos na comunidade escolar e na sociedade em geral.”

Além dos estados citados acima, Tocantins e Piauí também possuem Planos Estaduais de Educação em Direitos Humanos, mas não estão disponíveis online.

Qual a importância da existência de planos estaduais de educação em direitos humanos?

A existência de Planos Estaduais de Educação em Direitos Humanos é importante pela especificidade de cada estado, e também por ser uma forma de governos assumirem compromisso com o tema em suas ações, projetos e políticas públicas.

Durante a pesquisa para a elaboração do “Panorama da Educação em Direitos Humanos no Brasil”, pudemos perceber que mesmo com uma legislação específica para a EDH, ela não é garantia para a concretização de uma política pública para a área. Ainda assim, é importante como um subsídio para reivindicação e cobrança de que essas ações, de fato, aconteçam.

Para saber mais sobre a institucionalização da Educação em Direitos Humanos no Brasil, você pode acessar todos os materiais da pesquisa na página do “Panorama da Educação em Direitos Humanos no Brasil”.

Acompanhe o Instituto Aurora nas redes sociais: Instagram | Facebook | Linkedin | Youtube

]]>
Livros de escritoras negras brasileiras para conhecer mais da nossa literatura https://institutoaurora.org/livros-de-escritoras-negras-brasileiras/ Wed, 21 Feb 2024 17:46:54 +0000 https://institutoaurora.org/?p=237636 Quer aumentar a diversidade das suas leituras e conhecer mais da literatura nacional? Neste artigo, indicamos diversos livros de escritoras negras brasileiras.

Por Mayumi Maciel, para o Instituto Aurora

(Foto: Luiz Dorabiato)

“Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, foi inspiração para o desfile da Portela no carnaval de 2024. Com isso, houve um aumento no interesse pela obra e aproveitamos para indicar este e outros livros de escritoras negras brasileiras.

Publicado em 21/02/2024

Livros de escritoras negras brasileiras

Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves

“Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves

“Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, é um romance histórico centrado em Kehinde, natural do Reino de Daomé (atual Benim) e que foi sequestrada e escravizada no Brasil. Depois de conseguir sua alforria, ela retorna ao país de origem. Mas, já idosa, decide voltar ao Brasil, na esperança de reencontrar o filho, de quem foi separada muitas décadas atrás. A personagem Kehinde é inspirada em Luisa Mahin, mãe do abolicionista Luiz Gama, e heroína da Revolta dos Malês.

Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus

“Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus

O livro, em narrativa de diário, foi escrito na década de 1950, quando Carolina morava na antiga favela do Canindé, em São Paulo. A autora descreve aquilo que fazia parte de seu cotidiano: a miséria, o descaso social, a fome. Aliás, a fome é um tema de constante preocupação, numa busca de sustento sem fim, para poder alimentar a si mesma e a seus filhos. Uma realidade descrita tantas décadas atrás e que, infelizmente, continua atual.

Quem tem medo do feminismo negro?, de Djamila Ribeiro

“Quem tem medo do feminismo negro?”, de Djamila Ribeiro

A obra apresenta um ensaio inédito da autora e uma seleção de artigos que foram publicados, em sua maioria, no blog da revista “Carta Capital”. Os textos falam de assuntos como interseccionalidade, intolerância religiosa, cotas raciais, liberdade de expressão versus discurso de ódio e reconhecimento de privilégios.

Água de barrela, de Eliana Alves Cruz

“Água de barrela”, de Eliana Alves Cruz

“Água de barrela”, de Eliana Alves Cruz, apresenta em seu início a comemoração do centenário de Damiana, em 1988. Com esse ponto de partida, vamos sabendo mais sobre a sua história, as gerações passadas e as gerações que vieram depois. Vamos conhecendo mais da história da família, principalmente das mulheres, contextualizada em fatos históricos.

Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, de Jarid Arraes

“Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis”, de Jarid Arraes

Jarid Arraes traz, por meio da literatura de cordel, um resgate de importantes mulheres negras da história do Brasil, que muitas vezes são esquecidas ou diminuídas. As homenageadas na obra são: Antonieta de Barros, Aqualtune, Carolina Maria de Jesus, Dandara dos Palmares, Esperança Garcia, Eva Maria do Bonsucesso, Laudelina de Campos Melo, Luísa Mahin, Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Mariana Crioula, Na Agontimé, Tereza de Benguela, Tia Ciata e Zacimba Gaba.

Só por hoje vou deixar meu cabelo em paz, de Cristiane Sobral

“Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz”, de Cristiane Sobral

“Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz” é um livro de poesias de Cristiane Sobral, em que autora fala, principalmente, sobre a questão identitária da população negra. Alguns temas presentes nos poemas são a própria questão do cabelo, identificação individual e coletiva, ser mulher, racismo, relacionamentos e maternidade.

Querem nos calar, com organização de Mel Duarte

“Querem nos calar”, com organização de Mel Duarte

“Querem nos calar”, com organização de Mel Duarte, é uma antologia de poesias de 15 mulheres slammers de todo o Brasil. Os slams são batalhas de poesia falada, que chegaram ao país por meio de Roberta Estrela D’Alva, em 2008. A antologia passa por temas como machismo, racismo e desigualdade social.

Olhos d'água, de Conceição Evaristo

“Olhos D’água”, de Conceição Evaristo

“Olhos D’água” é um livro de contos de Conceição Evaristo, que traz principalmente histórias de mulheres negras e periféricas no Brasil – mas alguns contos são protagonizados por crianças e homens negros. Em suas obras, Conceição Evaristo parte daquilo que ela nomeia como “escrevivência”, ou seja, a escrita baseada em suas vivências e nas vivências de seu povo.

A arte para educar em Direitos Humanos

No Instituto Aurora, a arte está constantemente presente em nossas atividades, contribuindo com a nossa missão de educar em Direitos Humanos. A literatura é uma constante em projetos e ações, como o Clube do Livro, realizado em 2019 e 2020, e em rodas de conversa / leitura, ajudando a sensibilizar sobre diferentes temas. Dessa forma, as pessoas participantes podem se identificar com o que está presente na obra e / ou conhecer realidades diferentes da sua.

Saiba mais sobre a nossa visão e como atuamos para a redução de desigualdades.

Acompanhe o Instituto Aurora nas redes sociais: Instagram | Facebook | Linkedin | Youtube

]]>
Pensar sobre Racismo e não o perpetuar: é preciso ser antirracista https://institutoaurora.org/pensar-sobre-racismo-e-nao-o-perpetuar/ Wed, 14 Feb 2024 11:57:00 +0000 https://institutoaurora.org/?p=237631 O racismo está presente na história do Brasil e se apresenta sob diversas formas em nosso dia a dia e nas relações cotidianas. Para mudar esse cenário, precisamos buscar atitudes antirracistas.

Por Julia Costa, para o Instituto Aurora

(Foto: Franciele Correa)

Você acredita que compactua com o racismo e a relação de hierarquias entre raças? Se a sua resposta for não, que tal olhar por outra perspectiva e entender mais a fundo o que significa o racismo?

Tópicos que vamos abordar neste artigo:

Publicado em 14/02/2024.

O que é racismo?

O racismo parte da ideia de que pessoas ou grupos de pessoas são inferiores baseando-se na cor da pele e nas diferenças corporais que esse grupo possui, e que estão disponíveis para servir em todas as relações. Um exemplo disso é quando uma pessoa entra em uma loja e passa a ser perseguida pela segurança do local. Esse tipo de situação acontece com pessoas específicas, ou seja, pessoas negras, como se a cor da pele automaticamente definisse que ali não existe uma pessoa que possui poder de compra para adquirir os produtos ofertados. O racismo é praticado de forma consciente e inconsciente, e está presente em todos os tipos de relações que conhecemos. 

Para entendermos o que é racismo e como ele funciona (principalmente pessoas brancas que não o vivenciam), primeiro precisamos ampliar os horizontes sem entrar no modo defensivo, para assim entendermos que fomos ensinados a ser racistas e que temos como obrigação pensar, falar, escrever, nos posicionarmos como antirracistas, como explica Lia Vainer neste TED

Para além disso, precisamos entender que existem diversos tipos de racismo, como o estrutural, institucional e recreativo entre outros.

A frase abaixo do professor e advogado Samuel Vida explica de forma resumida a definição do racismo:

“O racismo é uma relação. Elas têm vantagem, elas se beneficiam materialmente e simbolicamente. Então, é preciso compreender o racismo sempre nessa dinâmica relacional.”

Racismo no Brasil

Antes de ler este tópico, te convidamos a refletir: você acredita que no Brasil o racismo estrutura as desigualdades? Se acredita que não, vamos trazer informações que comprovam o contrário.

O racismo no Brasil é intrinsecamente estrutural, ou seja, é realizado através de relações pré concebidas, nos ensinadas desde quando nascemos até o momento de nossa morte, relações pautadas em poder e hierarquia que pessoas brancas têm sobre pessoas negras. É enraizado, histórico porém sutil, e por conta disso passa despercebido no dia a dia. Há quem diga que racismo no Brasil não existe.

Não existe ou insistimos em não falar sobre racismo? Quais histórias conhecemos sobre a colonização do Brasil desde que nos entendemos por gente? Para elucidar este ponto, vale assistir a este TED de Chimamanda Adichie que nos faz refletir de forma sábia: “A consequência de uma única história é essa: ela rouba das pessoas a sua dignidade.”

O Brasil também é construído através do racismo institucional, em que se normaliza a discriminação por meio do legislativo, judiciário, instituições privadas, reitorias de universidades, diretorias de empresa, grupos que geram e detém grande poder socioeconômico e ainda perpetuam o modelo escravista, baseado na ideia de inferioridade de pessoas negras e indígenas. E como isso acontece? Através de políticas excludentes.

Por exemplo, se você trabalha em uma empresa, quantas lideranças negras conhece? Para refletir ainda mais sobre a pergunta, vale saber que 56% da população brasileira é negra, segundo IBGE. Ou, ao contratar uma pessoa para realizar serviços de limpeza, quais as características da grande maioria que realizam esse serviço?

Para pensar sobre o racismo, precisamos estudar a escravidão por outra ótica, não de apenas aceitar a história que foi e ainda é, muitas vezes, contada pela ótica do colonizador – que acredita fielmente que existe uma raça inferior de pessoas negras que merecem ser ensinadas a viver da forma “correta” através do trabalho braçal e hierarquias.  

Essa relação de hierarquia excludente velada pode ser vista de forma latente a partir de 1899 com a Proclamação da República, em que as pessoas negras foram “libertas”, porém incapacitadas de ter um trabalho digno, moradia, saúde, ou seja itens básicos de sobrevivência. Isso fez com que andassem pelas beiras da sociedade, ocupassem espaços isolados sem a mínima estrutura para se viver com dignidade. Estamos falando de um Brasil de 1899 ou de 2024? Quem se beneficia de forma positiva com esse tipo de sistema excludente? E, por que as pessoas brancas não precisavam / precisam pensar sobre esses itens, sendo que sempre foram ofertadas como regra e não exceção?

Racismo é crime?

Sim, lembre-se de que não é um mal entendido, é crime irrevogável e sem fiança sob a lei N° 7.716 que foi sancionada em 5 de janeiro de 1989. Discriminação de raça e de cor tem pena de reclusão de dois a cinco anos mais multa, sendo que o tempo a ser cumprido depende do tipo cometido.

Ao presenciar o crime, é obrigação e dever realizar a denúncia que pode ser feita através de telefone, disque 100, ou outros canais como whatsapp, telegram e vídeo chamadas em libras. Você pode conferir como realizar clicando aqui. Os canais estão disponíveis 24 horas, durante os sete dias da semana.

Racismo reverso: entenda porque isso não existe

Racismo reverso não existe porque o racismo surge a partir de uma relação de poder. Ele não existe porque pessoas negras, atualmente no Brasil e no mundo, não possuem poder econômico e assim consequentemente não conseguem ditar tendência para produzir exclusão e opressão de pessoas brancas na sociedade.

Por exemplo, quantas pessoas brancas você conhece que são mortas por serem brancas? No Brasil, em 2021, 79% das vítimas de homicídios eram negras, conforme divulgado pelo IPEA.

Quais são as pessoas ricas que possuem o maior meio de produção na sociedade atual e que consequentemente ditam regras? Segundo Suno, são 10 homens brancos.

Aamer Rahman, neste vídeo, explica de forma didática e com humor a única maneira de existir racismo reverso: através de uma máquina do tempo em que o colonialismo seria realizado por pessoas negras. Bom, máquinas do tempo não existem, não é mesmo, então porque racismo reverso existiria? 

Pode sim existir preconceito para com pessoas brancas, mas não racismo reverso. É importante sempre lembrar que racismo é uma relação de poder e hierarquia que faz com que pessoas pretas não estejam presentes em espaços que para pessoas brancas são postos como comuns. 

Como a educação em direitos humanos pode contribuir para contrariar esse sistema racista e fazer com que ele não seja perpetuado?

É necessário que as escolas – e, porque não, as universidades? – exerçam a obrigatoriedade da lei  10639 que inclui na grade a história e cultura afro-brasileira. 

E por que também as universidades? 

Ao pensarmos em uma formação de educadores e educadoras, por exemplo, é necessário que se tenha um amplo repertório para que essa disseminação ocorra. Ao lecionar, a pessoa educadora aplica o que foi ensinado, ou seja, diversos tipos de história, crenças, religiões e culturas, principalmente de matriz africana, para que assim entenda-se que a cor branca de pele não é a central.

Para além disso, é necessário leis para: 

  • Retirar dos meios acadêmicos / bibliotecas livros que representem a pessoa negra como inferior e que se tenha a representatividade delas em áreas da medicina, engenharias, diretorias de empresas, advocacia etc;
  • Inserir livros e imagens que retratam a família de pessoas negras com a imagem positiva que se é retratada uma família de pessoas brancas;
  • Inserir outros tipos de religiões na grade, não somente o catolicismo;
  • Agregar novas línguas no ensino, como africana (yoruba ou kiswahili);
  • Ensinar, desde cedo, sobre leis que combatem o racismo e a forma de denunciar ao presenciar o crime.

O sistema educacional é o pilar para que as pessoas construam perspectivas e repertórios estratégicos, sendo assim é urgente que ele seja rico e pautado em diversidade e equidade. Assim, teremos a disseminação de várias histórias e não somente a de uma matriz branca e judaica cristã, podendo absorver as pluralidades étnicas oriundas da África, que formam nosso povo. Dessa forma, nos desvencilhamos de um molde de ensino eurocêntrico.

Pensar sobre racismo e não o perpetuar é uma obrigação principalmente de pessoas brancas, em que o objetivo central é a de que todas as pessoas possam ocupar espaços, contar histórias e assim viver em um mundo com mais igualdade.

O Instituto Aurora tem como missão promover e defender a Educação em Direitos Humanos. Saiba mais sobre a nossa atuação em prol da redução de desigualdades.

Acompanhe o Instituto Aurora nas redes sociais: Instagram | Facebook | Linkedin | Youtube

Algumas referências que usamos neste artigo:

O que é racismo estrutural? | Politize!

Racismo | Ministério Público do Estado do Paraná

Racismo estrutural no Brasil | Geledés

]]>